quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Mãe


Mãe, existe um lugar que eu gosto. Lá tem uma praça com estátua e tudo, mãe. Tem criança que posa pra foto e namorados que riem alto depois de cada beijo. Mas tem moça solitária também, mãe. Uma que segura o telefone como quem espera uma notícia de morte. Mas, mãe, também há um velho que segura o joelho direito com as duas mãos. E um cachorro querendo abocanhar os pombos -- como o Faísca aquela vez, te lembra, mãe?... Tem um rio, um muro e lugares para tomar café. E também existem, imagine a senhora, muitas mães, mãe. E nenhuma como a senhora. Mas as nuvens são negras e a espada da estátua parece pronta para rasgá-las a qualquer momento. Sinto saudades de coisas das quais não sei o porque, mãe. Te olho aqui do meu quarto e não consigo atravessar a porta para te dar um abraço. Talvez porque nada disso exista, mãe. Ou talvez porque nenhum de nós precise agora senão de um olhar.


Por: Rimini Raskin

Benjamin C.

Tristeza.
Amargura.
Pesar de uma vida fracassada.
Pesar desta morte que, fatalmente, será também fracassada.
Como não lembrar uma última vez da época em que eu sonhava com a minha morte?... Da época em que eu a queria bela, nobre, condicionada a altos valores?...Como deixar de me lembrar daquele tempo, na Avenida Ingres, minha cabana, depois mais tarde, já homem, quando eu procurava razões para morrer como se procuram razões para viver? Daquele tempo em que eu queria dar um sentido à minha morte tanto quanto um sentido à minha vida? Sim, como deixar de lembrar do tempo em que estava pronto para morrer contanto que fosse lutando, em pé, afirmando alguma coisa imperecível?
Hoje, nada. Nada senão uma morte por nada, à imagem de uma vida por nada.
Nada senão uma morte insensata, à imagem de uma vida privada de sentido.
Nulidade, nada senão nulidade, após uma vida inteira a serviço da nulidade.
E ninguém para me prantear; ninguém para lamentar minha perda; ninguém por quem morrer; ninguém até para saber que morri -- e meu corpo encontrado um dia, por acaso.
Morre-se como se viveu: circunstancialmente, como um cão.

Contudo, resta este texto.
O resto dessa vida sem resto.
A única coisa que deixo, eu, que nada deixo.
Meu primeiro texto.
Meu último texto.
Este texto em que, durante quatro noites sucessivas, tornou-se para mim uma mortalha.
Esse texto em que falei de meu pai e minha mãe, do diário dela, de Paradis e de tio Jean.
Que vou fazer dele?
Que posso fazer dele?
Queimá-lo? Destruí-lo? Enterrá-lo? Levá-lo comigo? Deixá-lo aqui, sobre esta mesa -- e aconteça o que acontecer?
Uma outra coisa talvez...
Uma última ideia...
Uma ideia absurda, eu sei -- porém não mais do que toda essa comédia a que, durante quarenta e dois anos, eu me prestei.
Esta ideia é que bastaria um homem, um só homem, uma só memória de homem...
É que basta um cérebro de homem, mesmo estéril, mesmo mudo, para, face ao mundo, face à horda...
Não é uma remissão. Não é uma esperança. Mas sem dúvida tampouco é o acaso que colocou, anteontem, esse homem no meu caminho...
É tarde.
Está em tempo.
Está na hora de partir -- como está dito, como está escrito: com medo de que o dia volte.
Agora, morrer depressa. Sem grandiloquência nem cerimônia. Sem toalete fúnebre nem palavra final. Morrer como se dá um passo em falso.


Assim se encerra a confissão de Benjamin, tal como veio ter às minhas mãos um dia em Paris, sem outra explicação. Tudo ali estava. Todas as pistas do caso. Todos os fios entrelaçados.Todas as indicações que, dispostas em desordem, iam me permitir refazer o curso de uma existência de que, aparentemente, eu fora uma das últimas testemunhas.
Na verdade não faltava senão a expressão do último ato -- aquele corpo que, misteriosamente, jamais foi encontrado.


Por: Bernard-Henri Lévy 

Das Madrugadas Em Que Me Condenso e Não Convenço




Faz tanto frio. Tanto frio quanto insônia dessa madrugada. Tanta madrugada quanto frio...e insônia pelo frio da madrugada acordada. Faz tanto que não sofro tão pouco. Mas faz pouco, isso sim, que não durmo o tanto que deveria dormir. Tenho as mãos tão geladas que não encontro coragem para me tocar a dias. E se não me toco, como poderia tocar a música que imaginei?... Sinto medo pelo vão da porta. Um medo pelo silêncio do escuro. Sinto pena. E se sinto, é porque hoje é meu aniversário. Quero os óculos escuros de Andy Warhol e o poder de me fazer morrer ao contrário sem ter que me sentir uma lata de sopa de tomate. Quero um trampolim para o próximo passo. Serão três longos meses. De espera. De desespero por antecipação. Preciso de alguém que leia minha mão. Que diga que minha linha da vida não é de um todo interrompida. Leio esse livro a mais de um mês. Degusto devagar as palavras e a sensação de ser um peruano tão parisiense quanto qualquer parisiense da Paris de maio de 68. Já não busco senão a mim mesmo. Qualquer um desses me serviria. Como um garçom de memórias da minha própria vida. Estou impaciente com toda essa agitação subterrânea/subcutânea. Estou porque sei. Sei que sob meus pés os vermes ensaiam guerras sangrentas e invisíveis ao olho nu. E por isso acredito que nossos governantes tenham sido ótimos em biologia. E por isso acredito na dor de dente que sinto. O gato corre sobre a casa com elegância maior que o que cai por entre as telhas em dias de teimosia. Os cães estão mudos. Talvez seja o frio que lhes trave a garganta. Assim como acabou por travar para sempre a vida do pobre andarilho na madrugada passada. Ainda que para sempre não exista senão para a estupidez. E o que importa se sou eu quem sente ganas de latir por toda angústia na casa do lado e na outra e na outra que assim como na minha, também se angustia com todo silêncio dos que dormem para descansar?. Não se incomode pois não me importa se faço sentido. Não se incomode pois não me importa se te incomodo. Não me incomoda tua visão de talento. Apenas me importo em ser verdadeiro até mesmo nas minhas mais sórdidas mentiras. Por fim. Feliz aniversário pra mim. Que mesmo com vinte e quatro capítulos ainda não consigo completar um livro que valha a pena ser lido...senão vivido.

Por: Rimini Raskin

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Sobre a mecânica nos espíritos da escrita



Acho que a mecânica à qual tu te referes é na verdade minha tentativa de criptografar a naturalidade. Com certeza o emocionalmente natural é sempre mais tocante, mas esse texto em especial não deveria ser tratado como um desabafo, ele é um devaneio, uma visão de final de madrugada onde o sono e o sonho se confundem e nos confundem de maneira que nem tudo o que parece ser é, e nem todo aquele que se diz algo, necessariamente diz algo.




Por: Rimini Raskin

Sobre o Eterno, o Nada e o Infinito!





O "infinito" é abstrato, na verdade ele é como o "nada", não existem senão em palavras. O "eterno" completa a santa trindade do imaginário. Nenhum deles me serve, apesar de não conseguirmos fugir deste conjunto de fatores. Ao nascer, o Infinito são as possibilidades, o nada representa a vida e suas frustrações adquiridas ao longo do tempo; e para completar, eterno é o silêncio da morte! Real? Imaginário? Pouco importa. Afinal, o que me interessa de verdade são as experiências e não os seus motivos!




Por: Rimini Raskin

Assim sendo





Todos nascemos livres e assim o fomos por bem pouco tempo. Desde a primeira infância com as ordens dadas por adultos, que censuram e moldam nossa natureza à seus próprios ideais. Depois a adolescência, fase em que a consciência nos toma de assalto e que novamente nos moldam e podam com discursos de que não sabemos nada da vida e que tudo não passa de uma fase a ser superada, uma rebeldia sem causa. Mas tínhamos uma causa, nobre e infinita, retomar nossa natureza roubada. Selvagem e desregrada, mas sincera como as chuvas. Nos tornamos adultos, amadurecidos à força, descontando nossa frustração em nossos filhos, criando a nova geração de controlados e desacreditados intelectual e sentimentalmente. Partindo dessa idéia, fica fácil entender os avós que fazem todas as vontades dos netinhos, tudo não passa de remorso, uma maneira de compensar o dano que provocaram nos próprios filhos, que por consequência criticam sua forma de tratar os pequenos. Tudo não passa de um grande ciclo de frustração, vingança e arrependimento. Uma prisão de sentimentos que nos mantêm escravos à valores seculares, criados única e exclusivamente por mentes que pretendiam a criação do "homem rebanho", uma raça frágil e desequilibrada, as ovelhas que se permitem ao abate sem resistência. A saída seria, talvez, nunca perdermos a consciência do gigantismo de nossa pequenês. Sermos eternos deuses-crianças, donos de nossas verdades, soldados de nossa própria natureza.




Por: Rimini Raskin

Sobre o que não sei ao certo


"Perdemos um bocado de alma durante o percurso.
E não raramente, me pergunto onde foram parar determinados sentimentos.
Me esforço em lembrar e desejo com força!
Por vezes até acredito que certas partes de mim foram levadas embora no peito de outros.
E não há uma vez sequer em que não torça para estar enganado.
Para que um dia, quem sabe, as encontre no fundo de uma gaveta, 
intactas, 
esperando para serem resgatadas com um sorriso de "Ei, por onde andavas tu que a milênios não via?"

Por: Rimini Raskin

Conselho de um velho safado



Se vai tentar
siga em frente.

Senão, nem comece!
Isso pode significar perder namoradas
esposas, família, trabalho...e talvez a cabeça.

Pode significar ficar sem comer por dias,
Pode significar congelar em um parque,
Pode significar cadeia,
Pode significar caçoadas, desolação...

A desolação é o presente
O resto é uma prova de sua paciência,
do quanto realmente quis fazer
E farei, apesar do menosprezo
E será melhor que qualquer coisa que possa imaginar.

Se vai tentar,
Vá em frente.
Não há outro sentimento como este
Ficará sozinho com os Deuses
E as noites serão quentes
Levará a vida com um sorriso perfeito
É a única coisa que vale a pena.





Por: Charles Bukowski

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Talvez não seja por falta de coragem, mas alguns cães preferem a noite para se fazerem mais cães. Parte II


Toda noite a noite soa como deve soar. Mais ou menos como a voz do Lou Reed riscada com angústia química no banco do ônibus as três da madrugada. Na volta pra casa, no meio do nada. Mais ou menos como o velho bêbado que mal suporta o peso da própria desgraça sobre as pernas bambas de vodka barata. Garrafas são quebradas em um lugar mais próximo do que imagino. Gritos ao longe soam como animais em uma selva em busca de presas. Ou apenas como crianças celebrando os instintos mais sujos que a luz do dia sufoca. Prostitutas enfrentam o frio, esforçam-se para controlar o queixo que teima bater em desespero de abstinência e temperatura negativa. Não fossem as poças de lama e os caminhos de terra, talvez, apenas talvez, essas estradas me levassem à um lugar comum. Desejo cruzar a ponte, não por essa noite, mas por todas as noites que existiram antes dessa. Desejo olhar o rio engarrafado por dragas carregadas da areia suja que um dia construíram minha casa. A mesma sujeira que imundiciou minhas mãos e todos os corações dessa cidade imunda separada da vida pelo rio. Se canto, canto pela dor que o mundo constrói, pela fome de amor sadio, pela liberdade pintada no muro branco do bom cristão, pelo vizinho que chama a polícia, pela própria polícia chamada, pelas famílias quebradas e coladas com a durex dos bons costumes. Pela farça, pela sujeira maquiada no rosto das senhoras, pelos preconceitos velados na mesa de jantar. É por isso que cantava quando afinal caiu a noite no mundo e com ela a brutalidade dos desejos ocultos. Com ela os agentes secretos do pudor e do politicamente correto calaram. Com ela nasceu o pecado da língua. E o fogo que queima no peito do jovem transbordado e no velho cansado que descobriu cedo demais a própria moléstia. Com ela caiu o álcool e os cigarros. Caíram todos os que morreram cada dia mais e mais em uma jaula de trabalho. Caíram os poetas e os vagabundos. Caíram os bandidos sujos e os criminosos do pensar. Caiu toda nossa vergonha. Fizeram-se os cães escondidos na alma do cidadão comum. Lá fora a noite arde e quero também arder com ela. Com ou sem Lou Reed no banco do ônibus, com a voz que ativa a bomba dos meus irmãos abastados e bastardos de um pai que não seja o vício. Quero olhar no fundo dos olhos de quem me ignora e gargalhar de insanidade. Compensar todo esse vazio no peito de alguém disposto a me dar um cigarro, um copo ou o corpo. Preciso esquecer do dia de cão na calçada escolhida. Preciso voar. Longe de casa. Perto de mim. Preciso encontrar quem eu fui antes de terminar com as pernas fracas pela doença do final das horas.

Por: Rimini Raskin

domingo, 14 de agosto de 2011

Luxúria (Repostagem Corrigida)


Adoro-me quando não os escuto.
Embebido na ideia de que em uma mente sem consciência reside a melhor estrada para os sentidos.
Amo-me, especialmente quando o álcool guia meus passos entre todas essas silhuetas insinuantes de começo de noite e final de esperança.
E lá estão vocês, em perfeita oposição à tudo que me habita.
Não que isso nos importe, afinal, essa noite algo nos une, não é verdade?
Algo mais forte que qualquer diferença, e mais simples que qualquer desejo.

Adoro-os quando não os escuto. É sinal de que suas línguas estão ocupadas.
E se ainda não me escuto, é porque suas línguas estão ocupadas com a minha língua.
Peço-lhes que encarem o fato de que nossas mãos possuem um compromisso sagrado com nossos corpos, um laço de sangue e suor.
Assim, creio nunca ter desejado tanto não os escutar como nesta noite.

Juntem-se a mim na missão de não darmos nomes a nossos prazeres, socorram-me no caminho dos desejos onde não se limita o paraíso à apenas uma palavra.
Agarrem suas culpas pela garganta e guardem-nas para uma outra vida.
Percebam como estamos tremendo e permitam-se admirar a maravilhosa forma que o sorriso ganha no rosto de alguém que acabou de experimentar uma pequena morte.

Esqueçam as teorias sobre o céu e o inferno que lhes foram ensinadas na infância, esqueçam de tudo que não seja carne, saliva e sussurros.
Levem-me pela mão, acolham-me em seus braços, recebam-me em suas camas. Entrelacemos agora nossas pernas, tornemo-nos um.
Silêncio! Não os quero escutar. Calem minha boca com suas bocas e sintam!
Sintam como o universo se revela tão simples ao usufruirmos de toda arte que nos cerca.

Descubramos juntos que não há prazer maior que matar a sede de um corpo sedento. Não importa a sede, apenas matem-na. Por favor matem-na em mim.
E quando já estiver morta, lhes imploro que matem-na de uma nova morte sem fim. Purifiquem-me pelo desejo. Façam-me acordar ainda sentindo o gosto do pecado de suas peles.
Aprendamos juntos que não se pode queimar uma língua feita de fogo.
E fechemos os olhos acreditando que o amanhã se consumirá na revelação de um dia que jamais existiu.


Por: Rimini Raskin


sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Olfato


Olhar não quer,
Talvez não possa,
Mover quiçá,
De encontro à costa.

Há vida na espuma da onda,
Cheiro de sal, peixe e destino.
Popa, proa e castigo,

Há cheiro de amor...

...De amor e...

...De amor e só isso....




Por: Rimini Raskin


*Foto da fantástica fotógrafa americana, Mary Robinson.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

O peso de quem já tão leve aprendeu a voar


Estremeço diante destes olhos já quase cegos pela catarata que me observam sem olhar.
Sei que enxergam além de carne e ossos em um mundo de criaturas cujo alcance se limita à distâncias obtidas por meio de sentidos carnais, e isso é o que mais me atormenta e fascina nos dedos magros e atrofiados pelo reumatismo que em vão escondem muito mais do que só sujeira sob as unhas compridas e mal cuidadas. Transbordam histórias de amor e trabalho duro vivenciados em tempos onde minha existência sequer imaginava existir.
O corpo fraco que se assemelha a um embrulho de ossos frágeis e músculos ausentes recobertos por folhas de papel manteiga amarrotado me transtorna como um calafrio ao imaginar-me em um retrato futuro.
Quanto deve esta alma ter acreditado e se desiludido com os dias que traziam na bagagem a noite em ciclo doloroso?
E hoje, como em uma festa onde os convidados não receberam o convite, ela veste a melhor roupa da adolescência para erguer uma taça vazia em um caloroso brinde à solidão e à loucura.
Tudo isso sem sair do meu lado, de boca e olhos fechados, solitária neste banco de ônibus.


Por: Rimini Raskin


terça-feira, 9 de agosto de 2011

Talvez não seja por falta de coragem, mas alguns cães preferem a noite para se fazerem mais cães.



O álcool vermelho ainda repousa no fundo da taça quando minha cabeça maquina frases convulsas carregadas de significados disléxicos e ritmologias sintéticas de início de madrugada e fim de chama de vela; A última do pacote, a vela amarela, a luminosidade que acredito e credito como a do fim da vida. Em algum lugar alguém faz sexo sem paixão, outro se droga em uma cela que chama de sala onde um terceiro um dia usará para jantar. Vou até a sacada e a cidade inteira parece correr em fluxo interno. Sob os bueiros todo o resto da vida comum se arrasta em direção ao rio. Poderia ter te olhado uma última vez e não fiz. Uma sirene rompe o som sepulcral do silêncio dos moribundos, possivelmente um ataque do coração ou uma abordagem policial afim de manter a ordem no vazio. Suspiro e vejo minha alma virar fumaça em contato com o ar gelado da madrugada. De repente seja isso. Somos todos criaturas invisíveis esperando o inverno para nos tornarmos algo um pouco mais físico, para nos tornarmos carnais, ainda que intocáveis como o vapor. Hálitos de uma dor ainda maior. Os cachorros destrincham o lixo atirado nas ruas, brigam por nossas migalhas, um deles me olha e é como se lesse minhas aflições. Corre, corre com a força de quem foge da morte antes que a encontre nas rodas de um carro na próxima esquina. Volto para a mesa e bebo o vinho repousado. Lembro que alguns casais apelam para a ciência e geram seus filhos em um laboratório, dentro de uma pipeta. Comigo não é diferente. A embriaguez é minha cria, um filho in vitro que passei a vida lutando para que não se tornasse meu pai. O piso estala de frio, as coisas ganham ruídos surdos de desespero e por alguns instantes esqueci do toca discos girando no nada. Tocando a melodia secreta contida no espaço negro e liso e infinito que só os bêbados tem permissão de desfrutar. Não há comida no prato esmaltado sobre a mesa. Não há fome no corpo encostado sobre a mesa. Tão pouco há mesa senão um móvel encostado sobre. O toca discos me incomoda. Vendo meus olhos com a mão esquerda. Com a direita escolho um livro na prateleira branca de pés toscamente serrados. Escolho uma frase. A frase me escolhe.Nada me diz. Tudo me revela. E a vela que segue amarela me serve agora de lanterna para o segredo das luzes do alvorecer. Bebo um gole, e outro e mais um que assim como o primeiro também é um gole de sede e de necessidade paterna. Deito-me cansado, sem sono. Sem vontades de. Com desejos de muitos "ses" e "des" que nem o velho Hermann conseguiria explicar em um lobo que ao mesmo tempo são cem, mil. Com a cera desenho meu destino antes que o fogo abandone o corpo. No apartamento ao lado as crianças acordam. Imagino estarem revoltadas com a aula de sábado. Assim como na minha infância também a amaldiçoei. Meia garrafa e dois comprimidos de meio grama cada. Um cigarro amassado. O último. Um olhar apagado para a rua nublada de começo de vida. Não da minha. Mas daqueles que a ousaram enfrentar.


Por: Rimini Raskin

domingo, 7 de agosto de 2011

"O Diabo na Cabeça" de Bernard-Henri Lévy


Na sinopse original o livro é descrito como:


"A investigação sobre a vida misteriosa de um certo Benjamin C. revela uma complexa personalidade que reúne em sí todos os segredos e paixões da humanidade.

Bernard-Henri Lévy, eminente filósofo representante da nova geração de intelectuais franceses passa a romancista. E constrói uma trama fascinante que engloba mais de quarenta anos de tumultos e conflitos ao fim dos quais o diabo sempre vence. Usando como pano de fundo as maiores catástrofes do século atual (séc. XX) Lévy manipula em O Diabo na Cabeça personagens que são meros joguetes nas malhas da história."


Mas para mim o livro tem um significado ainda mais oculto e representativo. É o retrato de toda uma geração criada entre um furacão de novas idéias e tendências e a consequência poética, mas não menos catastrófica, que isso causou na geração do pós-guerra e que consequentemente alcançou à mim mesmo mais de quarenta anos depois.

As inquietudes e a rebeldia quase sempre intrínseca porém mal direcionada, ou direcionada a todos os lados, as fugas pela literatura, o cinema, a arte de vanguarda, os excessos e a auto-destruição iminente e frustrante, ainda que inocente.

Tudo isso é Benjamin C., tudo isso sou eu, e ao mesmo tempo não posso afirmar ou negar nada que nem mesmo meu próprio espírito refletiu e ainda reflete.

Os depoimentos de familiares e pessoas próximas, todos tão certos de sí mas tão falhos em relação à realidade do ser em questão.

As mentiras, as ideologias disfarçando o egoísmo pessoal, todo o falso romantismo dos atos que encantam os olhos alheios dispostos à uma aventura e igualmente suficientes para angariar inimigos que hoje olham com desdém para o objeto que já representou o motivo de seu ódio e inveja.

Sendo tudo isso coroado com um relato, também falho, do próprio Benjamim C., em uma carta onde para desatar nós sobre sua vida acaba por criar outros tantos.

Realmente uma obra a ser lida por todos que sentem dentro de sí a existência de uma força maior, um "diabo" que dita direções adversas e caóticas, muitas vezes até cruéis e de extremo egoísmo.

Mas que no fundo, não passam de consequências impostas à mentes que como diria Oscar Wilde "(nasceram para) Viver, enquanto a maioria apenas existe!


Por: Yuri Pospichil

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Sobre a Vulgaridade Sadia da Felicidade e a Tragédia Poética da Tristeza


Lembro bem do dia em que toda essa explicação acerca da vulgaridade sadia que pessoas felizes exprimem se desenrolou na minha mente. Era uma tarde, lembro bem desse fato pois estava em um ônibus que fazia a rota centro-bairro em Porto Alegre e sentia sono, sinais típicos de uma volta para casa após um dia de trabalho entediante e nada produtivo. Mas esses são detalhes, o fato que gostaria de narrar foi o que acabou dando origem a toda essa teoria (não que ela se baseie sobre um único acontecimento) e que acabou por elucidar algumas dúvidas e explicar certos comportamentos que me acometem desde que me dedico ao ofício de escrever. Pela janela minha visão se perdia entre carros que passavam lentamente quando enfim se livravam do engarrafamento, até que pousei minha atenção no canteiro central da Av. Assis Brasil onde uma moça muito jovem aproveitava a lentidão do trânsito para vender suas bergamotas aos motoristas cansados e estressados com tanta demora. E em meio a sorrisos, gritos, giros, pulos e danças despretensiosas, a jovem vendedora aproveitava para se divertir entre tanto caos urbano. Logo a cena mandou meu sono para bem longe e despertou o duende que liga os motores da imaginação. Seria possível tanta felicidade mesmo com toda essa bagunça de buzinas e fumaças negras que abandonam os escapamentos?
Logo depois pego-me olhando as expressões de outros passageiros que assim como eu acompanham a vendedora de bergamotas gritar sorrindo enquanto se diverte bailando nos espaços entre uma janela e outra dos automóveis.

- Quanta vulgaridade!
Comenta uma senhora para a amiga sentada ao lado.

Sinto ganas de rir, mas me contenho.
Afinal é isso! Isso é o que muitos não entendem e que eu mesmo não entendi por muito tempo, que toda felicidade é vulgar, irracional e finita como a chama de uma vela. Então por que perder tempo procurando explicações sobre as raízes do que nos deixa feliz? Por que continuamos com essa mania ridícula de querer explicar tudo o que nos acontece? Sempre guiados pelo medo da frustração, da decepção e da perda. E enquanto usamos nosso tempo para julgarmos a atitude alheia, a jovem que sorri e dança em pleno dia nos dá uma lição de como os bons sentimentos devem ser tratados. Não é o ato de dançar insinuantemente no meio da rua que desperta o julgamento amargo dos presentes, é a felicidade em estado puro que angustia e instiga a inveja naqueles que não se permitem apaixonar-se pela própria vida nem que seja por um instante. É bom ressaltar também que é sabido que até a paixão mais linda carrega em si uma carga grande de dores e aflições, nos eleva e rebaixa a níveis extremos, fazendo de nosso peito um canteiro de obras para um misto de magia, dúvidas e incertezas, por isso não confunda versos apaixonados com versos felizes. Obter profundidade e felicidade na mesma sentença é uma missão que enxergo em poucos pra não dizer em ninguém, e divido da opinião do velho Hemingway quando escreveu que encontrar felicidade nas pessoas inteligentes é uma das coisas mais raras que existem. Ver a felicidade escapar é o preço a ser pago por aqueles que param para pensar sobre os motivos ao invés de viverem com intensidade os momentos em que esse sentimento se faz presente.
Já em contra-partida a tudo isso temos a tragédia poética da tristeza, a profundidade filosófica da solidão dos homens, principais motivos pelos quais um escritor se sente tentado a escrever. É inegável o fato de que toda forma de arte baseada na loucura ou na sobriedade ou até mesmo nas angústias comuns ao ser humano recebe automaticamente mais atenção e credibilidade. Não só pelo fato de abordarem sensações e situações comuns a psyche transtornada, mas por realmente tratarem de temas com profundidade e grande relevância para aquele que procura explicações para suas dores. Eu escrevo melhor sobre a tristeza, escrevo mais honestamente quando estou triste e isso não é admitir incompetência senão aceitar o fato de que eu prefiro aproveitar meus momentos de felicidade para viver com mais intensidade. Talvez toda a inspiração e beleza que exista nas minhas linhas mais escuras, tristes e angustiadas, sejam frutos das experiências felizes a que me entreguei com verdadeira leveza e despretensão.
Mas não me entendam mal, não estou aqui defendendo o triste, apenas dissertando acerca de uma teoria que se aplica constantemente a minha vida e que se reflete no meu ato de escrever.
Acredito em linhas honestas, o que não quer dizer que devam ser reais. Ousar escrever sobre os sonhos é ousar escrever o destino. E mesmo que não consiga prevê-lo, é função do artista construir um futuro onde a imaginação ocupe um lugar de destaque.


Por: Rimini Raskin



Avec Tranquillité


O quanto devo eu ter esquecido durante tantos anos?
E quanto ainda devo lembrar do que me foi ensinado em tempos de que não me recordo?
O quanto realmente acredito em tudo isso?
E quanto deveria eu crer no que agora me ensinam?

Sinceramente, não sei.
Mas se há algo em que encontro certeza, é o fato de que ainda existe muito a ser feito.


Por: Rimini Raskin