sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Despertar é Preciso




Na primeira noite eles aproximam-se e colhem uma flor do nosso jardim e não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem; pisam as flores, matam o nosso cão, e não dizemos nada.
Até que um dia o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua e, conhecendo o nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada.





Por: Vladimir Maiakóvski

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Trecho de Noturnos - O Final Em Dez Capítulos



(...) Decidi levar à sério essa história de escrever como quem morre. É uma maneira simples de deixar algo para trás. Poderia deixar um filho, mas isso seria cruel, nenhuma criança se orgulharia de ter um egoísta filho da puta como pai. Um filho da puta capaz de colocá-lo neste mundo de merda, cheio de mentiras. Cheio de vazio. Esqueça o filho. Esqueça o legado de sangue e toda essa baboseira sobre eternizar-se. Eu fui uma criança feliz, talvez essa deva ter sido minha maldição. Nunca mais alcancei a alegria de criança, aquela felicidade de filhote que um cão velho nunca mais irá experimentar novamente. A felicidade de encontrar os que hoje se foram. Os que assim como eu, não aguentavam o peso do medo da vida entregue a nulidade de uma cidade pequena. Vivo nesse apartamento. Estou doente como esse apartamento doente de paredes sem tinta. Os médicos me mandaram ficar em casa. Pediram-me para não ficar sozinho. Falam tanta bobagem. Não as falariam se conhecessem o inferno. Não é preciso vivê-lo, basta experimentá-lo para a primeira impressão ser eterna. Sinto falta de coisas que fui. Sinto falta dos sentimentos. Das variedades de almas que me habitaram e que decidiram viajar para bem longe sem previsão de retorno. Como um marido que foi buscar cigarros e não voltou. Noite passada sonhei que um carro me buscava na frente da casa da minha mãe. Nele estavam o Raul e a Sofia, eles não sorriam, mas estavam lá para me buscar no mesmo carro azul que dirigíamos na noite do meu aniversário de vinte anos. O mesmo carro azul que caiu no rio horas depois de terem me deixado em casa. Vinham me buscar porque eu deveria estar naquele carro. Não deveria ter pedido para voltar. Mas agora é tarde. Tudo é sempre tarde. Eu passei mal, os comprimidos não me fizeram bem naquela noite. Queria tanto pedir desculpas. Mas é sempre tarde para quem nasce.

Quando soube do acidente, chorei tanto que minhas lágrimas queimaram o rosto, fizeram gretas como água que corta o deserto. E sempre que o rio transbordava, eu ficava na ponte esperando os dois nadarem de volta para a minha vida. Mas nunca aconteceu. E talvez seja por isso que dói tanto quando chove. Sem eles o fardo era pesado demais. Três anos depois, cruzei a linha que me mantinha preso à um passado indigesto e entrei no ônibus carregando nas costas somente minha condição. Sozinho. Raul escrevia tão bem, certamente seria publicado. Sofia era linda, era nossa. Éramos os donos das estradas de terra que levavam à lugar nenhum. Éramos os detestáveis do boteco do Seu Armindo. Éramos o que ninguém mais poderia ter sido. Mas é sempre tarde para quem nasce. É sempre tarde. Acordei com um aperto no peito. Chamei. Mas não havia ninguém para escutar um grito que não existiu. Olhei em volta e por um segundo estava de novo no meu quarto de guri, com os pôsteres do Led Zeppelin na parede e a lua na janela de madeira. Por um segundo respirei de novo o ar que vinha do rio e consegui chorar como no dia do acidente. Não durou muito. E aqui estou eu decidido a escrever para lembrar. Lembrar para esquecer de onde vim e dos que ficaram no caminho com seus sonhos de guitarra e revoltas nunca muito bem explicadas. Passei a manhã toda cantando aquela canção que escrevi com Sofia. Aquela que falava que é sempre tarde para quem nasce. Tarde. Éramos nós, os contra o mundo e contra nós mesmos, do mundo. Éramos nós. Três. O uno. O balanço da pracinha e as folhas caindo na clareira do parque. Éramos nós. Os planos que ficaram no caminho. O vazio nunca suprido. Éramos nós. Agora não é mais. Nem o frio. Nem a chuva fina nas ruas de paralelepípedo. Não é mais. Agora é um. E nesse apartamento, doente, somente o espelho é testemunha de que tornei-me insuportável como um velho cachaceiro. Ou pior, sou outra vez indesejável como um filho adolescente que se recusa a tomar os remédios. Sou a escória do mundo. O veneno da alma. Por isso tomei a decisão de escrever como quem sangra. Com o fôlego de quem morre em dez capítulos. (...)

Por: Rimini Raskin


terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Sobre o Cão Que Me Habita



É de vagar, devagar, divagando, de vagão em vagão,
Que me faço homem.
Feito planta em temporal, completamente atemporal,
Que não sabe o quanto, mas o tempo faz.
Que não sabe o tanto, mas que o vento traz.

É de viajar, e de ver e de andar, sem prumo e sem lugar,
Que me faço outro.
Feito homem ocidental, sem luz no topo do crânio.
Que não sabe o pranto, mas que se derrama em dor.
Que não vê o sol, mas sente na alma o calor.

É de não saber, e de querer, mais do que o corpo aguenta,
Mais do que a mente sana, que a dor ensina, que o sangue ferva.
É de não ser senão estar.
É de olhar sem foco, sem tato e sem gosto definido.
É de não amar os sinos, aprender os ritos e queimar as vestes.
É por tudo isso, por todo esse nada, solidificado,
Que me faço traço, que me faço verso.
Que me levo à sério na grande piada do universo. 

Outro cão, outra noite de trago e de calçada suja.
De carne fria e gordura, de cervejas quentes abertas à dente.
De passado vindo a tona com suas mulheres nuas. 
Outras histórias que não serão contadas, banhadas a álcool e cana.
Tilintantes, incompletas, perfeitas se vividas ao contrário.
De ponta cabeça, como se sente o bêbado ao deitar-se na cama.


Por: Raskin 

domingo, 8 de janeiro de 2012

A Fuga da Palavra


Quando a palavra saiu do papel e se afastou
                         da margem
                                                     do poema

a face atônita do cotidiano
se desprendeu da prosa
e mergulhou nas sombras
de um poema qualquer
vagabundo e inútil
como este aqui

como eu me lembro daquele dia!
a palavra se ia
             cada
                   vez
                        mais
                                     longe
                                                              e fugaz...

e o poema resistia
tão teimoso que era.

e o poeta já se sentia
o rei! o rei! o rei da poesia!

na ausência da palavra
o poema era um espasmo!                
era uma esfera de chumbo
rolando no tapete
entre bolas de cabelo
e pedaços de unha e poeria!

ao longe uma larva verde
com sua grotesca garganta
gritava:
vanguarda! vanguarda!
prendam aquela palavra!
mas a palavra longínqua e pequena
rolou de poema em poema
anêmica e enfraquecida
e por si-só tombou no meio da rua
(a saber: a larva era a lua)

o poema ria-se todo
mas seu torto riso besta
teve que conter
pois a aguerrida palavra
reuniu todas suas forças
armou-se até os dentes e,                              
                                                                      cabi
                                                                            s
                                                                            baixa

                                                            à

                                     margem

                 retorna
cortês
e formal
como deve ser


Por: Levi Branco


                                                                                      

sábado, 7 de janeiro de 2012

A Cidade Adoece




Como diria uma amiga: - A cidade adoece!
E apodrece, até mesmo a mais pura das boas vontades.
A cidade desbota, recoloca e transporta.
As vezes para muito mais longe do que se pode aguentar de cara.
Sem rosto, sem gosto nos tornamos, todos.
Carregados pelo braço, contra vontade.
Com uma seringa pendurada ao pescoço.
Sorriso débil no rosto, morte na tela na hora do almoço.


No alto do prédio um coração bate sem saber.
Embaixo da ponte uma alma se esvazia sem por que.
Não há nada aqui que não atinja e tinja de negro a visão.
No lugar onde santos exercitam-se em vão,
Não se pode competir com o consumo.
Não se é páreo para a tele...

Visão!


Nôs vendem luz nos templos de sangue e fome e mentira.
E nenhum avião te levará tão alto quando o céu está além do fumo espesso e dos ônibus expressos.
E nenhum amor está nas palavras do homem de terno.
E nenhum elevador te poupará as pernas.



Somos vivência e experiência.
Nenhuma essência precederá nossa existência.
Criador e criatura, iluminação e amargura.

Somos a cura!

O vício e o mestre.
Somos a pureza que a cidade adoece.




Por: Rimini Raskin

domingo, 1 de janeiro de 2012

Trecho de "Noturnos - O Final em Dez Capítulos"









"Décima Noite


Passei muito mal hoje à tarde. Pensei que não aguentaria. Quebrei um copo e minhas mãos sangraram ao juntar os cacos da minha vergonha. Manchei de vermelho os azulejos brancos do banheiro na tentativa de lavar os ferimentos na pia velha já meio lascada. Enrolei as mãos com um pano de prato e bebi um gole de vodka para suportar a dor das fendas abertas. De hora em hora a vizinha vem me perguntar como me sinto. Sorrio e digo que estou trabalhando em umas coisas. Ela sorri de volta. Fala algo sobre os benefícios do trabalho na alma humana. Algo que me lembra aquela frase famosa no portão de Auschwitz. Mas no fundo, gosto muito da Dona Marlí. Lembra minha mãe. Uma vez, quando eu tinha nove anos, subi em um araçazeiro enorme para uma criança de nove anos, despenquei uns três metros até atingir o chão. Quebrei o braço direito e cortei as mãos, não sabia como voltar para casa, tinha vergonha dos machucados, medo de que minha mãe me visse chorando. Eu, o homem da casa, o único homem que ela ainda podia chamar de seu. O único que não tinha fugido durante uma madrugada com outra mulher. Minha mãe não gostava do Raul e da Sofia. Mas no fundo eu até entendia ela. É complicado viver com medo de ser abandonada de novo. Acho também que ela não gostava por medo de admitir que os dois eram a coisa mais certa em uma vida tão errada como era a nossa. Sei que não fui o melhor filho, mas fui o melhor que pude para uma mãe que era a única que eu tinha. Sinto muito não ter estado ao lado dela quando os aparelhos foram desligados. A morte as vezes é longe demais, as vezes nem isso. Uma vez fomos ao funeral de uma guria, Raul a conhecia, Sofia foi por curiosidade. Eu não sei por que fui. Para estar junto eu acho. O nome dela era Camila. Só chegando lá é que descobri se tratar da filha mais nova do Miguelão da fruteira. Estava linda. Era uma criança. Não é mais. Hoje sinto que um pouco da nossa infância ficou ali, com ela. Não por sentimento, nem a conhecíamos direito, mas aquela imagem, aquele corpo pequeno em uma caixa, aquilo marca, e assusta.  Na volta do velório, atalhamos pelo terreno baldio onde ficava a antiga fábrica de Schmier. O lugar era cheio de bergamoteiras, sentávamos lá no verão para comer as frutas enquanto conversávamos ou ouvíamos as coisas que o Raul escrevia. Deitávamos à sombra das árvores em uma lona que achamos na casa da avó da Sofia. Era bom. Era quente. Ao contrário desse apartamento. Aqui é frio demais durante a noite e as crianças ao lado parecem não ter sono. A madrugada inteira parece acordada para o meu desespero de solidão. Lembro de uma vez que o Raul falou que o frio só existia na ausência. Hoje entendo perfeitamente o que ele quis dizer naquela noite de inverno em que dormíamos os três amontoados, escondidos no galpão do velho Nestor. Naquelas noites que ninguém sabia. Que ninguém poderia saber. Não sentíamos culpa, mas tínhamos medo do que pudesse acontecer. Medo da vergonha que nossos pais sentiriam. Era comum sentir medo. Mas era ruim. Sofia tinha medo do pai dela, eu também tinha. O Raul não tinha medo de nada. Queríamos montar uma banda e eu até aprendi a tocar guitarra. Hoje não sei se lembro das notas. Sofia cantava, cantava tanto quanto era linda. Sofia. Tinha os cabelos escuros e compridos como uma crina de cavalo. Trazia nos olhos todo brilho que faltava na vida daquela cidade de merda. Gosto de lembrar do Raul escrevendo no caderno velho de capa verde musgo, cabelos pelo ombro, pele muito branca. Escrevia sobre o que encontraríamos no outro lado do rio. Riscava frases do Lou Reed em todo canto. Brincávamos de ser o Velvet Underground, com nossas jaquetas de couro e calças jeans. Ficávamos horas e horas curtindo vídeos das bandas que o primo dele mandava de São Paulo. Víamos e revíamos aquela pilha de fitas VHS. Imitando as atitudes, as poses, as roupas. Naquela época ainda não era tarde. Mas nenhum de nós teria como saber..."




Por: Rimini Raskin