sábado, 30 de novembro de 2013

Pampa



Mágica de linha hipnótica
Tira amarela
Pintada em intervalos métricos
Magia invisível
Noite densa
De chuva violenta
Sobre campos e estradas pampeanas

Raios como lâmpadas
Explodindo no interior
De imensos algodões doces empoeirados
Caminhões de toras com seus motoristas quimicamente acordados
& aos poucos
Visão laranja ouro
Da aurora divina que espanta tempestades
& revela o vazio

Da minha e da outra e da próxima janela
Verde/verde/verde
E cerros de granito que instigam desejos de elevação
E suaves ondas de capim baixo
Ou trigais amarelos ao vento
Ou uma vaca vermelha
Solitária no campo imenso
O zazem da vaca
A iluminação nos escuros olhos enormes
Onde a alma humana não dá pé

E onde está o homem?
Whitman velho barba louca
Coração em caça
Onde andará teu anjo fraternal?
Onde estão as mãos que um dia rasgaram o ventre da terra
para construir esta estrada?
Sentados em seus galpões ancestrais
De água quente e pelegos e chapéus
Talvez em uno com seus cavalos

Que bela é a imensidão deste pago
Diante dos meus olhos
O reflexo da angústia humana
&
Outra vez as nuvens
&
A noite
&
A volta pra casa
&
O tudo é o nada
&
O NADA
ESTÔMAGO DE DEUS
QUE DE AUSÊNCIA SE ALIMENTA
_______________________________________

O SAMSARA NAS RODAS DO MEU ÔNIBUS


- raskin

domingo, 17 de novembro de 2013

Vem Poeta



Vem poeta
Tygre da palavra
que o mundo é cervo e degola

Das tuas linhas quentes
Água benta / verso fluente
bebido das mãos místicas do universo

Vem,
poeta da fome e da loucura
Veneno das horas
Serpente de plumas
Língua ferina

Destila tua verdade
de carne crua e ossos fortes
Arte a dentro / sangue a fora

Banha no mar teus pecados
Teus cigarros
A lama do teu rosto

Teu cheiro de vinho doce
Tão barato quanto a morte louca
comprada a prazo

Vem poeta
Artista do fim do mundo
Inutilidade necessária

Dos homens o maior

Afinal, quê vida valeria a pena
sem teu poema de farol?

Qual pena, poeta
mereceria a vida sem teu verso de sol?

Vem poeta
Vem poeta

e alimenta com fogo
meu vício de sentir


Por: Raskin

*(imagem: “The circle of the lustful” - William Blake)

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Quinta Noite



Cinco noites para o fim do mundo. Como quando apareceram aquelas luzes no céu e as pessoas sentiram ainda mais medo de Deus. Nós três rimos da ignorância alheia, mas talvez bem no fundo, também tenhamos sentido medo dos holofotes. Nunca se está preparado para o fim. Nunca se está pronto para caminhar no vazio. Nos abraçamos forte como quem abraça pela última vez. E nos olhamos sem enxergar no rosto do outro um futuro seguro. O mundo não acabou naquela semana. O de vocês dois duraria mais três anos. Já o meu, dura tempo demais. Tem um velho que mora no apartamento do final do corredor. Ele não tem ninguém. Me olha como quem se olha no espelho. Como quem reconhece no outro os próprios traços, a própria maldição dos dias que não voltam. Ele poderia ser meu pai. Todos os velhos deste prédio poderiam ser meu pai. Talvez sejam. Talvez eu mesmo seja meu próprio pai. Que se foda esse pai que nunca existiu. Que não existe, mas que insiste em se mostrar em todos os lugares. Não sinto ódio porque o amor nunca existiu e sentimentos só se tornam reais quando precedidos por seus respectivos antônimos. 


Sorte tinha o Raul com pais tão legais, adultos de sonhos frustrados que projetavam no filho o que nunca puderam realizar. Nunca fui vê-los depois do acidente. Não sei se me culpo por isso. Vi a mãe da Sofia na feirinha uma semana depois do velório que eu não fui. Ela parecia ausente. Talvez aliviada por tê-la perdido para o rio ao invés de perdê-la para nós. Minha mãe também deve ter se sentido aliviada, mas nunca confessou. Ninguém nunca confessava. Nem nós. Queria ter pedido o caderno verde do Raul, tinha medo que os pais dele lessem o que não compreenderiam, mas não fiz. Eu fugi. Era agora o único culpado do crime que cometemos juntos, o de nunca ter feito uma escolha naquele lugar onde todos deviam decidir-se entre uma coisa ou outra. Queríamos colocar a liberdade em prática, mas esbarramos na crueldade das línguas que se alegravam em não se manterem nas bocas para disseminar o pecado mortal que os olhos escondidos atrás das cortinas vigiavam nas madrugadas que o tédio impedia o sono de chegar. E é para me encaixar na normalidade que hoje escolho o fim da chama. É para encher de orgulho o coração amargo dos velhos que apodreceram em vida. Para que nenhum outro o faça. Para que nenhum padre fale bobagens sobre meu corpo, como falaram sobre o caixão do Raul e com certeza sobre o de Sofia também. 

Depois deles, tudo era peso e desconforto. Era quarto fechado, Infelicidade. Um não suportar a própria imagem. Já não chorava mais depois de um tempo. Não sentia sono. Não sentia sequer a tristeza. Estava dormente, gelado, cansado demais das mesmas coisas, mesmas roupas e mesmas vozes. Tornava-me sombra, cria do vazio. Não existiam mais amigos, nem família desmoronando, o trabalho me fazia querer morrer de tédio. Não existia crise existencial e esse era o problema. O que me desanimava e ainda desanima é saber quem sou, quem fui e o que tenho. Talvez tenha sido o idiota mais esperto da turma e de nada valeu. Aproveitei os meios e fui conhecendo os finais mais cedo do que deveria. Não serei levado a sério porque um dia quis assim. Não serei levado a tona, pois a ninguém interessa meu naufrágio. Talvez me falte vontade, me falte paixão pela vida, talvez o que me sobre seja culpa. De uma forma ou de outra, já não vejo graça. Tudo que preciso já fui expresso em telas ou em páginas. A verdade é que talvez o que me falte seja imaginação. As novidades se repetem, as pessoas desvanecem, e mais do que isso, tornei-me desinteressante a meus próprios olhos. 
Pensando bem, talvez o problema nem seja o desânimo, nem a tristeza e nem a saudade. O que eu sinto é o vazio do olhar para o nada, é o pensar a esmo e correr em vão. Gritar por dentro para que não ouçam. Gritar até ficar rouco e calar a alma. O grande problema é que apesar de tudo, nunca existirá um culpado além do tempo. E para sempre o infinito não existe. E para sempre será sempre tarde para quem nasce com a alma maior do que a força para carregá-la. (...)*


- Raskin


* Trecho do romance inacabado "Noturnos - O Final Em Dez Capítulos"