quarta-feira, 24 de janeiro de 2024


Onde ela está
feliz está
o sol queima
um pouco mais
na casa nova
em que ela
decidiu
morar

Eu
deito
e
sonho
porque
das coisas
que me sobraram
talvez a menos triste
seja sonhar

Margarida ama o mestre
Margarida fiel
Margarida desespero
Margarida choro de Maria
sobre a terra seca de Yerushalaim

O mestre louco
quarto 118
Ao lado Ivanuchka grita
para o pavor da gorda Praskóvia
Hegemon insone acaricia o cachorro
com a lua cheia de luz

Margarida bruxa
Margarida nua
Margarida graciosa no salão de baile
sorrindo nervosa ao assassino

Moscou arde sob a espada do estrangeiro
enquanto Behemoth e Korôviev zombeteiros
saqueiam o que lhes dá vontade
Azazello apenas cumpre sua função




A felicidade do pão é a fome
do peixe água de fonte
do homem o santo nome
Insone, o deus que talvez não seja
Sabor na ponta da língua
Cercado por um mundo de sonho
Do canto do corvo agourento
Imune
Quando fala a verdade mente
Quando mente o corpo sente
Que no fundo, a gente não sabe a verdade
Sequer o inocente
Crente
É o que faz da dúvida
Certeza recorrente
É o que faz do medo
Um desnecessário parente







Medo de pão é o pão quando não é
Do peixe a lágrima invisível ao anzol
Do homem é o homem quando é
Cego da vida pelo farol
O que me desperta fascínio
no ébrio habitual - é a ebriedade
talvez por essa minha dificuldade
de atrelar-me ao vício

Já o que me inquieta
na guerra - é essa vil gratuidade
Essa vil gratuidade em que todas as almas
em mercurial comércio - são trocadas em desleal escambo


Escrever se tornou uma ação estranha e desajeitada. É como se o pedaço do meu cérebro responsável pela criatividade tivesse sido coberto por lama espessa. A luz não consegue mais transpassar essa cortina escura e viscosa que cobre a visão criativa. Quem colocou essa merda lá? Quando? Ou, se ninguém a colocou lá, como diabos ela surgiu? ... Ok, não parece nada muito urgente, mas é no mínimo um incomodo. Me pediram para escrever algo para um cara que anda calado há bastante tempo, quase morto. Mas ele não está morto de fato, seu odor e sua presença algumas vezes invadem o meu plano, esse plano que abracei quando ser eu mesmo se mostrou extremamente pesado e doloroso. Sendo sincero, olhando agora para trás vejo que fui eu mesmo quem espalhou essa lama suja sobre o cérebro, fui eu quem enterrou a leveza e cuspiu na cara do que deveria ser mais simples. Então talvez seja hora de me retratar. Quando te machucaram na infância eu estava lá confuso e sozinho e com medo de levar a culpa, por isso passei todos esses anos fingindo que nunca aconteceu. Mas eu também estava lá quando a pobreza e a crise exigiam mágica para seguir em frente. Eu te vi criar a própria magia enquanto o pai estava desempregado e a mãe mergulhava feito uma âncora em um mar de loucura, álcool e cigarros. Te vi arrancar alguma música de um instrumento patético plugado em um amplificador achado no lixo e reformado como dava. Quando perguntavam do pequeno corte no auto falante tu respondia rindo que era para economizar em um pedal de overdrive. Eu estava lá esse tempo todo. Quando a poesia bateu na porta do teu quarto eu também ajudei a abrir. Quando o demônio da tristeza arranhava as paredes de casa eu também ouvia. E a cada manhã que te via levantar da cama e fazer mais magia eu tinha certeza que nada podia te derrubar. Afinal que tipo de mágica seria forte o suficiente para te fazer sucumbir? E então descobrimos que ela existe e que é forte pra caralho. O defeito de quem está acostumado a vencer é lutar com a guarda aberta, confiando somente na esquiva e no jogo de pernas. Foi aí que os golpes mais duros começaram a entrar, um depois do outro. Round após round acompanhei o massacre de alguém que não conseguia mais reagir, ou melhor, que não queria reagir até o oponente parecer muito mais confuso do que cruel. E como não havia um juiz para iniciar a contagem eu mesmo lancei sobre o teu corpo uma toalha de rendição. Não sabia o que fazer, foi um impulso para não ver morrer o que sempre me foi tão caro. Minha última tentativa de proteger uma chama fraquinha de magia. Te cobri com a toalha e venho absorvendo os golpes por algum tempo. Talvez tempo suficiente para que uma lama espessa cobrisse a chama, mas não o bastante para apagá-la. Fico feliz em não ter te deixado morrer. Tudo em ti, das piores debilidades até as maiores conquistas, as toneladas de histórias que hoje divertem a minha filha, os nichos específicos de conhecimento, tudo ainda está em mim. Por isso te quero aqui, porque eu estou aqui também e tenho certeza que ainda temos muitas coisas espetacularmente banais para conquistar. Tudo soa confuso e vergonhosamente otimista, eu sei. Mas acho que estou disposto a correr esse risco de soar caricato como alguém que sobreviveu a um desastre agarrado em uma porta de banheiro.