quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Escrever se tornou uma ação estranha e desajeitada. É como se o pedaço do meu cérebro responsável pela criatividade tivesse sido coberto por lama espessa. A luz não consegue mais transpassar essa cortina escura e viscosa que cobre a visão criativa. Quem colocou essa merda lá? Quando? Ou, se ninguém a colocou lá, como diabos ela surgiu? ... Ok, não parece nada muito urgente, mas é no mínimo um incomodo. Me pediram para escrever algo para um cara que anda calado há bastante tempo, quase morto. Mas ele não está morto de fato, seu odor e sua presença algumas vezes invadem o meu plano, esse plano que abracei quando ser eu mesmo se mostrou extremamente pesado e doloroso. Sendo sincero, olhando agora para trás vejo que fui eu mesmo quem espalhou essa lama suja sobre o cérebro, fui eu quem enterrou a leveza e cuspiu na cara do que deveria ser mais simples. Então talvez seja hora de me retratar. Quando te machucaram na infância eu estava lá confuso e sozinho e com medo de levar a culpa, por isso passei todos esses anos fingindo que nunca aconteceu. Mas eu também estava lá quando a pobreza e a crise exigiam mágica para seguir em frente. Eu te vi criar a própria magia enquanto o pai estava desempregado e a mãe mergulhava feito uma âncora em um mar de loucura, álcool e cigarros. Te vi arrancar alguma música de um instrumento patético plugado em um amplificador achado no lixo e reformado como dava. Quando perguntavam do pequeno corte no auto falante tu respondia rindo que era para economizar em um pedal de overdrive. Eu estava lá esse tempo todo. Quando a poesia bateu na porta do teu quarto eu também ajudei a abrir. Quando o demônio da tristeza arranhava as paredes de casa eu também ouvia. E a cada manhã que te via levantar da cama e fazer mais magia eu tinha certeza que nada podia te derrubar. Afinal que tipo de mágica seria forte o suficiente para te fazer sucumbir? E então descobrimos que ela existe e que é forte pra caralho. O defeito de quem está acostumado a vencer é lutar com a guarda aberta, confiando somente na esquiva e no jogo de pernas. Foi aí que os golpes mais duros começaram a entrar, um depois do outro. Round após round acompanhei o massacre de alguém que não conseguia mais reagir, ou melhor, que não queria reagir até o oponente parecer muito mais confuso do que cruel. E como não havia um juiz para iniciar a contagem eu mesmo lancei sobre o teu corpo uma toalha de rendição. Não sabia o que fazer, foi um impulso para não ver morrer o que sempre me foi tão caro. Minha última tentativa de proteger uma chama fraquinha de magia. Te cobri com a toalha e venho absorvendo os golpes por algum tempo. Talvez tempo suficiente para que uma lama espessa cobrisse a chama, mas não o bastante para apagá-la. Fico feliz em não ter te deixado morrer. Tudo em ti, das piores debilidades até as maiores conquistas, as toneladas de histórias que hoje divertem a minha filha, os nichos específicos de conhecimento, tudo ainda está em mim. Por isso te quero aqui, porque eu estou aqui também e tenho certeza que ainda temos muitas coisas espetacularmente banais para conquistar. Tudo soa confuso e vergonhosamente otimista, eu sei. Mas acho que estou disposto a correr esse risco de soar caricato como alguém que sobreviveu a um desastre agarrado em uma porta de banheiro. 

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