domingo, 25 de dezembro de 2011

Roda




A superfície frágil sob seus pés era a única barreira para o abismo e isso lhe causava frissons de ciranda. Era capaz de sentir seu controle sumindo nos furinhos da peneira cravada no piso, escorrendo por suas pernas e pingando restos de integridade no roteiro da gravidade. Era visível e gritante como não suportaria por muito mais tempo essa situação. Dava para ver o corpo se molhando, enganado de febre, suor de um mal entendido.

Ele estava sendo violentado em brincadeira de criança. Tiravam as únicas faculdades de controle que ainda possuía sobre seu franzino corpo. Era a primeira vez que realmente sentia seu tamanho de anão (é que sempre se sentia maior que de fato era). Que agonia! Estavam dirigindo seu caminho. Além da dor oblíqua em seu estômago, o que mais o constrangia nesse momento, era o fato dele próprio ter pagado para isso. O haviam convencido da sensação boa, da voluptuosidade cíclica desse envolvimento. Afirmavam de uma convicção que acariciavam seus ouvidos a respeito da belezura que seria o abandono de si na mão do outro. Quando ele achava arriscado demais todos diziam, alguns gritavam embriagados da experiência recente:

— Sua bichinha!
— Deixa de doce e vai fundo Mané!
— Por mim! Por favor, por mim! É legal, você vai ver!!!
— Confia ou não confia?
— Não acredito que vai dar pra traz agora.

Ele então pensava consigo mesmo: “Será mesmo que acham isso agradável? Não pode ser. Ou sou analfabeto de sentimentos ou sou letrado em cautela, pois sinto como se fosse me derramar até desidratar.”

Essas experiências faziam com que suas bochechas corassem tanto, que em desenho animado todos diriam se tratar de duas maçãs do amor. Sentia uma vergonha danada de não se conter diante de sua companhia, uma mulher gigante. A verdade é que se sentia pequeno demais perto dela. Muito dos desentendimentos entres eles talvez fossem devido a essas privações que ela lhe causava.

Não se sabe se por excesso de cuidados e zelos ou culpa pela ausência destes. Ela sempre o tratava como um inútil. O deixando em um progressivo estado de diminutivo. O que sempre o aborrecia, afinal ele sabia muito bem escolher suas próprias roupas. Era meio desorganizado, mas era seu estilo. Além de ser completamente capaz de amar sem demonstrações constantes. De manhã afirmava ser seguro disso, a tarde discordava de si e sentia que era limitação mesmo. No entanto gostava de fingir que não e por vezes se convencia provisoriamente. Só que a despeito de todos esses encolhimentos ela era a única capaz de esticar sua coragem. Isso em um único toque que o embevecia do mais aconchegante e profundo conforto. Ele poderia ficar horas em seus braços hábeis em construir paraísos e sonhos encantados, largado em seus abraços “redomares” adormecido nos peitos de leito, sonolência sempre cortada com um beijo no final.

Ele sabia que era ela, a crescida de tudo, a de beijo doce, quem lhe dava força nesse redemoinho de sensações grandes. Mas ainda assim não podia deixar de sentir o mundo a sua volta. Rodopiando e girando como se não tivesse estômago. Seus pensamentos afrouxados de tontedão desgrudavam de sua mente em palavras sem força de voz:

— Esse mundo não come, ele não enjoa. Esse mundo não pensa. Esse mundo só roda e roda e nauseia.

Não gostava de sentir as oscilações do ambiente. Elas sempre refletiam-se em seus sentimentos. Sabia que quando se descontrolava espirrava insatisfação nos outros. Não era vírus o que ele temia lançar nesses movimentos convulsos. Mesmo que o nojo, murcho na comunhão do reflexo, sujasse as mangas da guardiã da sua vulnerabilidade. Isso pelo contrário até o comprazia: ver o total desprezo com que ela tratava tudo o que era ceifador de seu amor. Jamais vira algum reflexo de asco nos olhos dela. Diante das mais miseráveis imundícies de seu corpo ou transgressões de sua alma, ela sempre o olhou como a mais pura natureza, fonte do maior asseio.

O que ele temia de polpa e caroço, de bagaço, de fruta inteira, mesmo sabendo de todo o poço de compreensão que estufava sua amada benfeitora, era jorrar tudo que estava consumindo seu interior. Tudo o que não havia sido digerido direito. Era pavoroso demais cogitar a possibilidade de derramar em jorros frenéticos toda a porcaria que ele havia desfrutado as escondidas. Ele a tinha desrespeitado. Não se via digno de amor tão incondicional. Seu amor visceral por coisas estúpidas havia cometido sua carne de prazeres capitais. Andou “comendo” fora de casa. Havia rompido o laço da confiança? Se o erro ficasse guardado com ele não, era o que imaginava.

O descontrole começava invadir seu corpo magro. Sabia que não seria possível conter seus impulsos dilatados − que já alcançava normalmente proporções respeitáveis. Nesse instante não saberia dizer o que prevalecia em sua vontade:  se o desejo de mentir e prolongar aquele momento infernal, que paradoxalmente permitia a continuidade de uma felicidade intacta e ainda lacrada,em total suspense ou libertar toda podridão que o inchava de não poder mais respirar.

Em um transe de dor, conseguiu alcançar por instantes uma espécie de projeção astral alçada por meio da voz encantadora da mulher sentada ao seu lado. Aquele timbre cessava sua respiração e com ela a vida e a dor, propagando o alívio no compasso e ritmo daquela fala analgésica:

—Meu amor! Você está se sentindo bem? Diga. O que foi? O que você tem?

Sua voz era tão terna e seu olhar tão triste, que parecia sentir por telepatia todo aquele sofrimento. Mas ele era esperto demais, não se entregaria tão fácil. Ficou calado. A boca era o limite da sua impureza, o único estanque da larva azeda que o enchia de culpa. Não pôde dizer nada. Seus olhos em uma tentativa desesperada de ser boca pronunciaram lágrimas de vergonha. Ele, no entanto, em um movimento mais rápido que a emoção desgarrada, furtou-se da exposição. Antes que a mulher grande, sentada ao seu lado, pudesse ter visto esse grito derradeiro, já havia se virado para o outro lado. Seu desespero ficou novamente suspenso quando sentiu as mãos dela procurando as suas. O calor febril que vinha delas amornou seu corpo gélido de morte. Outra vez ela lançou seu canto de sirena:

— Que mãos frias! Dê elas aqui. Nossa que gelo. Está melhor? Querido? Hum?... Tá esquentando?

Ele fez que sim com a cabeça. Mentiu, ele sempre mente. Não sei como nunca perceberam. Seus olhos sempre ficam vazios quando mente. Mas dessa vez mentiu, por sentir que não estava de todo mentiroso. Realmente sentia um presságio de melhoras e adiantou-se a sensação. Emocionou-se quando percebeu que após esse primeiro momento de angustia foi capaz de ver mais longe. De sentir mais forte. De ver brilhar as luzes acima, abaixo e para todo lado que olhasse. Estava feliz, nem se lembrava mais de seu martírio hiperbólico ou de sua felicidade eufêmica. Não se lembrava de si ou dos outros.  Por hora todos pareciam pequenos demais, simples demais. Mais lhe pareciam bonecos de plástico, fáceis de brincar, comuns, sem detalhes, todos iguais, do que os titãs de antes. Ao menos de onde estava não conseguia notar as diferenças que tanto o encantavam antes.

Não entendia. Por que havia se aprofundado tanto em tudo? Para que havia permanecido tanto tempo lá embaixo onde o barulho é mais alto, onde a realidade é grande e onde a vista tem mais obstáculos? Agora se sentia bem melhor. Estava na superfície. Estava na epiderme da existência, queria o contato mais agudo. Ali os sons eram como lembranças, a realidade era pequena e a vista era grande.

Não tinha mais medo de dizer o que queria. Mas não disse por que descobriu que não precisava, na verdade não se importava mais. Estava livre dele mesmo. Nem sentia o corpo. Não se lembrou de olhar para o lado. Não teve nem mesmo a curiosidade de saber como sua amada estava nesse seu novo momento. Ele estava mais seguro de si. Sabia que a amava em brisa constante. Sabia que a tinha a seu lado. De onde estava não tinha medo de ser abandonado. Podia sentir o amor dela por ele. As suas mãos. Sem precisar ouvir nada. O silêncio não o assustava mais. As palavras é que poderiam, talvez, perturbá-lo.

Essa sensação de estar distante de si mesmo, e ao mesmo tempo próximo, lhe pareceu coisa de alma. Não procurou entender melhor, estava bom assim. O mundo estava mais lento, tempo de quadro.

Num repente sua barriga começou gelar de novo. Sua visão, em vertigem, se expandiu depressa demais. Não conseguiu acompanhar a rapidez do infinito. Era como se estivesse caminhando para um penhasco sem ter o controle das penas. Não estava mais gostando daquilo. Olhou para o lado e viu, novamente, a mulher grande. Ela estava na mesma constância de pedra. Não esboçava o mínimo terror no rosto. Ele não a entendia. Apenas precisava dela como nunca precisou antes. Começou a apertar aquela mão, com dedos, anéis, palma e costas, alheia a todo perigo em volta. Ele a apertava como querendo acordá-la, chamá-la de volta a vida ou se contaminar de inércia. Mas calmamente a mão dela apenas o acariciava em uma cadência de ponteiro de relógio.

Sabia que não iria sobreviver a esse acontecimento. Cuidou de se despedir sofregamente de tudo do que sentiria falta. Percebeu que sentiria falta de tudo, até mesmo de sentir que estava morrendo. Chorou duas lágrimas silenciosas, sua dor mais parecia derramar pra dentro. E foi acumulando dor. Acumulando medo. Acumulando sentimento. Acumulando frio e suor. A concentração ameaçava romper seus limites nos últimos instantes de vida, e assim revelaria todo seu segredo e estragaria toda a memória que poderiam guardar dele, ou a expansão de tudo que ele era prometia engolir o mundo e dentro dele se fazer aberto, visível, e todos veriam seus segredos e intimidades. De qualquer forma estragaria a cria que teve de si mesmo.

A mulher do seu lado emergiu do transe que muito o sufocava. Havia se contaminado de inquietação. E como em uma maratona de revezamento, em uma troca de vigilante, o mundo voltou-se a ela, que era objeto até então. Era complicado para essa mulher compreender a decepção nos olhos dele. Ela havia feito tudo o que imaginou desejosa de agradar, ou ao menos de parecer agradável. Se suas boas intenções não se manifestavam em atitudes coerentes a suas vontades, a falta estava no hábito de esquecer-se de si. Há anos estava empalhada em si mesma, enferrujada não sabia como agir. É que sempre fora automática, amortecida de vida, mas acordara imersa em versão analógica, inteira manual.

Ela sentia que todo o amor que tinha dentro de si parecia não bastar para ele, mas fingia não ver aquele buraco negro ávido. Assim ia fartando-o de um imenso, fofo e leve algodão doce, esforçava-se em lhe dar uma vida em cor de rosa. Mas a saliva gulosa, daquela boca, derretia na velocidade de beija-flor todo aquele vazio feito de açúcar: “Como pode ser tão insaciável?”

Ela o amava, sem saber se isso era sentimento ou costume. Não estava certa se ainda continuava viva depois de tê-lo conhecido. Não conseguia desejar nada que não fosse para ele. Não desejaria, absolutamente, tempo livre se fosse para ficar longe dele. Sua vida havia se transmutado nele. Mas o mais impressionante dessa metamorfose é que ela ainda estava ali, existia. Havia se transformado nele, mas não era ele. O que diabos seria ela? De que substância seria preenchida? Afinal, ela havia saído nele, e o que restara para essa criatura que ficara?

Isso quase nem lhe interessava mais. É que ele estava ali do seu lado. O contato com a vidinha dele, mesmo que fora dela, a alegrava de pisca. Era até mais certa dele do que dela mesma. Sentia como se sua réplica ainda tivesse um vinculo transparente grudado nela. O amava com egoísmo de quem ama a si mesmo, o apreciava como um narciso debruçado sobre si.

Questionava-se em pensamentos anêmicos demais para se realizarem: “Como podia ser dois em um?” Era verdade, eles não eram um. Havia se esquecido de que já não eram mais, mas também sabia que não eram dois, preferiu pensar de objeto nessa situação.

Olhou pare ele com olhar de espelho. Arrepiava-se em tê-lo para si. Tinha a pessoa a quem mais amava no mundo. Rompendo os preceitos platônicos que não sustentam carne nem mortais, apertou sua mão ligando vida. Como o achava lindo. Seus olhos brilhavam como água em orvalho. Percebeu de súbito que tudo parecia crescer quando próximo dela e diminuir quando distante. Era abnegada. Não estava gostando de se sentir superior, egoísta, cheia de vontades próprias. Pensou consigo: “Será pecado? Serei eu?”

Engraçado como se sentia impar, sozinha e bastante de si nesse momento. Esqueceu-se do amor de osmose que a tomava por inteiros momentos antes. Estava sozinha de alma. Não queria mais nada. Mentira. Estava mentindo. Sim! Isso era certo para qualquer um que olhasse de fora. Em momento algum havia soltado a mão de seu par. Como se tivesse medo de se perder no vôo livre. Cansou de se ter. Queria mesmo era cuidar de seu pequeno amorzinho. Ele era o único que se encorajava nela. Gostava tanto de se doar. Doar-se a convencia de que era sim cheia de alguma substância secreta que havia ficado nela após a separação de tempos atrás.

O mais engraçado ou trágico era que a proximidade física entre ambos não garantia contato de alma, viviam em um planeta de mesma órbita, girando em torno de um mesmo eixo, mas eram povoados de realidades distintas.

Aí as engrenagens pararam. Mãe e filho desceram. E a roda gigante continuou.



Por: Tiago Paiva

Um comentário:

  1. Eu realmente sou apaixonado por este conto desde que me foi enviado pelo grande autor\grande amigo\ grande irmão Tiago Paiva há mais de um ano atrás! E não vejo hora mais propícia para tê-lo aqui no esqueleto senão essa!

    Obrigado Tiago, por tanta sensibilidade!!

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