sexta-feira, 21 de novembro de 2014

O cão com olhos de fúria



O cão com olhos de fúria
espreita nas esquinas do cérebro
revira o lixo, persegue a fantasia
faz tanto barulho que a cabeça dói
e eu choro quando ninguém está olhando

O cão com olhos de fúria
rosna com escárnio e
escancara os dentes da história
entre frestas de consciência

Esse mesmo cão que é a história
perseguindo a própria cauda
em um sinal claro da demência canina
que não raramente também atinge o homem

O cão com olhos de fúria
não me deixa dormir
e eu o vejo em cada espelho alterado
no fundo dos meus olhos vermelhos
enquanto todos os outros dormem
e sonham seus sonhos de trabalhador

O cão com olhos de fúria
as vezes morde com brutalidade
para depois lamber as feridas

O cão com olhos de fúria
me oferece o colo quando tudo
fica muito escuro e triste demais

Eu amo o cão
como um viciado ama o seu vício
e o doente, depois do susto,
ama a própria enfermidade

O amor do cão é uma mulher apaixonada

-raskin

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

A catedral da desordem




A nossa batalha foi iniciada por Nero e se inspira nas palavras moribundas: “ Como são lindos os olhos deste idiota”. Só a desordem nos une. Ceticamente, Barbaramente, Sexualmente. A nossa Catedral está impregnada do grande espetáculo do Desastre. Nós nos manifestamos contra a aurora pelo crepúsculo, contra a lambreta pela motocicleta, contra o licor pela maconha, contra o tênis pelo box, contra a rádio-patrulha pela Dama das Camélias, contra Valéry por D. H. Lawrence, contra as cegonhas pelos gambás, contra o futuro pelo presente, contra o poço pela fossa, contra Eliot pelo Marquês de Sade, contra a bomba de gás dos funcionários públicos pelos chicletes dos eunucos e suas concubinas, contra Hegel por Antonin Artaud, contra o violão pela bateria, contra as responsabilidades pelas sensações, contra a trajetória nos negócios pelas faces pálidas e visões noturnas, contra Mondrian por Di Chirico, contra a mecânica pelo Sonho, contra as libélulas pelos caranguejos, contra os ovos cartesianos pelo óleo de Rícino, contra o filho natural pelo bastardo, contra o governo por uma convenção de cozinheiros, contra os arcanjos pelos querubins homossexuais, contra a invasão das borboletas pela invasão dos gafanhotos, contra a mente pelo corpo, contra o Jardim Europa pela Praça da República, contra o céu pela terra, contra Virgílio por Catulo, contra a lógica pela Magia, contra as magnólias pelos girassóis, contra o cordeiro pelo lobo, contra o regulamento pela Compulsão, contra os postes pelos luminosos, contra Cristo por Barrabás, contra os professores pelos pajés, contra o meio-dia pela meia-noite, contra a religião pelo sexo, contra Tchaikowsky por Carl Orff, contra tudo por Lautréamont.



 - Roberto Piva, em Os que viram a carcaça, Março de 1962, SP.

domingo, 16 de novembro de 2014

Verso Solto



tantos
versos
entre as
muralhas
de Netuno
e os olhos
da lua
sobre
a pele
de quem
sobrevoa
os traços
e as cores
do mundo
no cotidiano
de Saturno
e seus dias
curtos
há tantos
versos
nas vogais
de Corsino
as esquinas
os morros
a costa
das ilhas
entre as
verdades
e as janelas
o outro
verso
de outra
língua
e a mesma veste
da minha língua
fundidos
orbitais barbitúricos
em córtices associativos
da grande mente universal
vermelho-pulsante
tendendo sempre
por ceder
uma outra vez
ao doce estranho
que o complete
que faça ser
que seja feito
incompleto
ou imperfeito
mas tece feito teia
corre feito veia
verso feito maré
feito espuma
verso que se é
feito bruma
verso que voa
verso que pousa
da língua que fala
do olho que ousa.

- Por Pedro Rieger, Yuri Raskin Pospichil e Sillas Henrique

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Cotidianos



Anjos de asinhas transparentes
se esborracham contra os vidros
Cacos de vida e taças de vinho
o orgulhoso beberá esgoto tratado
No rádio, amor ginsbergiano legalizado
em mais dois estados e um distrito

América, e a não violência quando legalizará?
Por que é tão difícil relaxar?

Loucos armados de microfones em caminhões de som
arrastam uma direita raivosa com discursos anacrônicos
A floresta cai, a chuva não.
A morte é negra, jovem, periférica
e o sangue seca no asfalto por falta de justiça nas torneiras

A polícia dorme em paz agora que julgará os seus
Cláudia segue sendo arrastada  

O sertão virará Cuba e o sudeste sonha com o mar
O norte sufoca em fumaça e cascos de vaca
O sul veste seu capuz branco e elege um purificador
Fraude e Paranoia instauradas no cotidiano

O governo nunca gostou de índio
Na bandeira um Kaiowá com a corda no pescoço
e a boca cheia de soja

A banalização do extermínio
A naturalização do horror

Será que sou um comunista?


-Raskin








quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Zen-Ki

*Dna In All Living Things, Artwork Metal Print by Bill Sanderson


A Revelação
do ouro matinal
que desponta no topo
do crânio duro
de homem ignorante
O sol generoso
que escorre das mãos
e toca o rosto da menina
de olhos grandes
O rádio vibrando
a música preferida
as 4 da madrugada
enquanto a tempestade
arrasta esqueletos metálicos
direto para o estômago das
bocas de lobo
A explosão desesperada
esmagando a caixa toráxica
com a força de um elefante triste
que te derruba na cama
feito um nocaute de Deus
O sonho
e de novo os olhos dela
guardando o universo
que também é o universo
guardado na boca
do menino Krishna
O sonho
e as piscinas quentes
onde nu, nadei na minha
adolescência
O sonho
e toda carne e vinho
que devorei ao lado
dos que ao lado não mais estão
O sonho e todo o lixo
acumulado na alma
que precisei limpar
O sonho e todos os comprimidos
cães sacolas de lixo
e paranoia telefônica
O sono
& de novo o sonho
como a única
realidade aceitável
por trás do manto
cinza da desolação
As preces mudas
aos ouvidos surdos
de uma divindade
de qualquer céu ou não
Independente das chuvas
secas ou plenitudes eventuais
que pudessem atravessar a alma
Espelhos mágicos fogo e fumaça 
feito aves do paraíso
colorindo a visão ancestral
de homemcavalo DNA indomado
rodopiante no fundo de laboratórios estéreis

 - Papai, me conta uma história.
Ela disse.

E isso é tudo que tenho feito
desde então


-Raskin