sábado, 28 de abril de 2012

O Longo Dia Quinta-Feira


Mal acordei reconheci
o dia, era o de ontem,
era o dia de ontem com outro nome,
era um amigo que acreditei perdido
e que voltava para me surpreender.

Quinta feira, lhe disse, me espere
vou me vestir e andaremos juntos
até que tu caias na noite.
Tu morrerás, eu seguirei
acordado, acostumado
com as satisfações da sombra.
As coisas ocorreram de outro modo
que contarei com íntimos detalhes.

Demorei em encher de sabão o rosto
- Que deliciosa espuma
em minhas faces -.
senti como se o mar me desse de presente
brancura sucessiva,
minha cara foi só uma ilhota escura
rodeada por vieses de sabão
e quando no combate
das pequenas ondas e lambidas
do terno hissope e afiada lâmina
fui fraco e de imediato,
malferido,
malgastei as toalhas
com gotas de meu sangue,
procurei alúmen, algodão, iodo, farmácias
completas que correram em meu auxílio:
só vejo o meu rosto no espelho,
minha cara mal lavada e malferida.

O banho
me incitava
com pré-natal calor a submergir
e encolhi meu corpo na preguiça.

Aquela cavidade intra-uterina
me deixou preso
esperando nascer, imóvel, líquido,
substância cheia de tremores
que participa da inexistência
e demorei para me mover
horas inteiras,
esticando as pernas com delícia
sob a submarina caloria.

Quanto tempo para me esfregar e me enxugar,
quanto uma meia depois de outra meia
e meia calça e outra metade,
tão longo espaço me ocupou um sapato
que quando em dolorosa incerteza
escolhi a gravata, e já partia
para a exploração, procurando o meu chapéu,
compreendi que era tarde demais:
a noite tinha chegado
e comecei de novo a me despir,
peça por peça, a entrar entre os lençóis,
até que logo adormeci.

Quando passou a noite e pela porta
entrou outra vez a quinta-feira anterior
corretamente transformada em sexta-feira
saudei-a com riso suspeitoso,
com desconfiança por sua identidade.
Me espera, lhe disse, mantendo
portas e janelas plenamente abertas,
e comecei de novo minha tarefa
de espuma de sabão até o chapéu,
mas o meu vão esforço
se encontrou com a noite que chegava
exatamente quando eu saía.
E tornei a me despir com esmero.

Enquanto isso esperando na oficina
os repugnantes expedientes, os
números que voavam ao papel
como mínimas aves migratórias
unidas em arremetida ameaçadora.
Me pareceu que tudo se juntava
para me esperar pela primeira vez:
o novo amor que, recém descoberto,
sob uma árvore do parque
me incitava a continuar em minha primavera.

E minha alimentação foi descuidada
dia após dia, empenhado em colocar
um atrás do outro meus adiantamentos,
em lavar-me e vestir-me a cada dia.
Era uma insustentável situação:
cada vez um problema com a camisa,
mais hostis as roupas interiores
e mais interminável o paletó.

Até que pouco a pouco morri
de inanição, de não acertar, de nada,
de estar entre aquele dia que voltava
e a noite esperando como viúva.

Já quando morri, tudo mudou.
Bem vestido, com pérola na gravata,
e já requintadamente barbeado
quis sair, mas não havia rua,
não havia ninguém na rua que não havia,
e portanto ninguém me esperava.

E a quinta-feira duraria todo o ano.


Por: Pablo Neruda

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Fumaça



Noite passada sonhei que estava na pracinha fumando um baseado com o flanelinha que fica na esquina aqui de casa. Nesse sonho ele me contava que tinha me conhecido em uma festa no Carioca's Bar em 2003. Eu falei que não lembrava, mas ele completou a história sem me olhar - O espelho do bar nunca foi muito bom mesmo. -  

Porque hoje a estação dos corações apaixonados e indigentes mortos se reapresenta



As manhãs voltaram a ser frias. O inverno se apresenta como um amigo antigo que na verdade nunca nos abandonou por completo. As noites voltaram a ser frias. Os mendigos falecem, velhos e crianças adoecem. Tudo fica muito mais letal quando o ar é gelado demais. De alguma forma será sempre inverno para a morte, mesmo quando o suor escorre da testa, mesmo quando não há choro ou família, mesmo assim. Há alguns anos reencontrei alguns amigos de escola, bebemos, fumamos, cada um com sua história e um passado em comum. Relembramos os tragos e os risos, os viciados e os suicidas que ficaram pelo caminho. Cada um trazia uma lembrança pendurada pelo pescoço em uma corda. Mas concordamos que apesar de tudo, vencemos um destino lógico de desgraças. Um deles, recém chegado de São Paulo onde morou durante alguns anos, recomeçava uma vida no lugar onde antes vivia. O outro, com família formada, falava sobre o emprego satisfatório e a felicidade de não deixar faltar nada à filha. Além deles, a mesa contava com mais um, que assim como eu, não morou fora ou constituiu família, mas apesar de ter atravessado o passado em pé, e talvez com muito mais retidão do que eu próprio, penava na angústia da falta de perspectiva. Mas era inverno na cidade, eram cigarros e vodka na mesa de churrasco; recordações, pesares, piadas...Naquela noite voltava a ser inverno para os quatro e depois era pegar o carro e devolver  um pai para sua filha, era rodar sem rumo pelas mesmas ruas da infância. Mijar na calçada enquanto as putas gritavam propostas e eu balançava o pau antes de voltar para o meu lugar no banco de trás. Adormeci em um momento que não posso recordar, e acordei na casa dos meus pais com o motorista dormindo no sofá da sala. Abri a porta, mas na rua não era mais inverno. Nem o enorme amassado na traseira do Marea que ninguém soube explicar era inverno. E antes de toda bobagem que possa ser dita, essas noites não falam de passado ou viver remoendo histórias. A questão é que o tempo sempre irá existir enquanto houverem amigos vivendo em uma cidade pequena.

 Por: Rimini Raskin

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Dos dias em que as poças nos molham as meias



Quando fecho os olhos
vejo um homem
e ele é jovem
e ele caminha

Carrega uma pasta
por uma estrada
e
nela passam ônibus
e
um enorme cemitério
que não passa
nem fica
por trás dos muros

Na carteira
nenhum dinheiro
nas meias furadas
se apoia
um sapato bege
velho e feio
um presente
de quem?
ele nem lembra

Na cabeça
apenas uma canção argentina
e
dor nos músculos da perna
e
bolhas nas plantas dos pés

Ele não tem emprego
por isso não tem
pressa
Caminha há mais de duas horas
A água molhou as meias
nem frio
nem quente
nem sente
tão pouco

Não tem mulher
ele não tem
De porta em porta
ele
não
tem
quem o deixe passar
nem um telefone que toque
ele
não
tem
outra saída

As folhas se vão
nas mãos de porteiros
entre janelas e guaritas de segurança
em cooperativas de caminhoneiros
elas
simplesmente
se vão

Entre
os que passam
ele
simplesmente
se esvai
aéreo
heterodoxo
quase decomposto

Ele se vai

Para casa
uma cadeira
e
uma mesa
com pratos
mãe e irmão
arroz
e frango cozido

E
na pasta vazia
deixada de lado
quem sobra
é o mundo.



Por: Rimini Raskin

Kalos Eidos Scopeo



Meu prazer
é
saber 
que
apesar 
de querer
eu
posso

c
  a
    l
   e
  i
d
 o
  s
   c
  ó
 p
i
 o


Por: Rimini Raskin



terça-feira, 17 de abril de 2012

Menina Verde


Ah, menina
Continue
assim
A espalhar tuas jóias aos ventos
Não ouça minhas tolices
Pois, que bobagem essa minha
de julgar o quanto vale
o que só tu sabes quanto custa

Ah, menina
Ah, menina

Viva em mim
com teu verso solto
Com teu sorriso largo
de angústia imensa

Com esse berço
onde encontro sempre um descanso
Com esse encanto
onde me encontro para desfrutar de um canto

Ah, menina
Siga verde
Viva leve

Me leve, menina


Por: Rimini Raskin

Não deixem que cortem-lhes a língua



Não pretendo me alongar, mas gostaria de dizer algo.
Prestem atenção se ainda apreciam o direito de expressão.
Aos pouquinhos nos arrancam a língua e não percebemos
Fazem parecer bobagem, nos fazem sentir bobos por defende-la.
Em um mundo onde a verdade ofende, é preciso estar atento.
Em um mundo onde o sagrado encobre mentiras, é preciso ter muito cuidado.
Não existe nada maior que a verdade
Nada é tão sagrado que não possa ser tocado
Aceitar-se inferior é aceitar-se morto
As mãos do homem criam coisas do homem
O coração do homem cria esperanças do homem
A mente do homem cria os desejos do homem
Os primeiros a entenderem isso deveriam ter ensinado
Mas guardaram para usar o poder de reinar sobre todos os outros.
Não tenho medo de ofender a deus com uma verdade
Pois o medo é uma arma do homem usada contra ele mesmo.

Por: Rimini Raskin

quinta-feira, 12 de abril de 2012

O Jogo



Quando estou entediado gosto de competir com meu copo de cerveja.
A única regra é que o último a se espatifar no chão vence.
O lado bom, é que sempre ganho.
O ruim, é que está ficando caro comprar tantos copos.

Por: Rimini Raskin

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Nostalgia



Me sinto um imbecil
ao constatar que
alguns antigos amigos 
tornaram-se também
imbecis

Me sinto um pouco mais imbecil
por talvez
nunca ter notado 
que muito provavelmente 
sempre tenham sido
uns imbecis

E isso serve para tudo
Coisas
Lugares
Situações
Amores antigos
e transas mornas
que na adolescência 
eu julgara divertidas

Passei tanto tempo
nutrindo esses fantasmas
que hoje os vejo com
enormes barrigas
e rostos redondos
de sorrisos forçados
Cumprimentando-se 
por uma educação que nunca tivemos

Malditos imbecis
Maldito mundo de imbecis

As coisas morrem o tempo todo
Mas frequentemente esquecemos de enterrá-las
E nos seguem fedendo
e fazendo com que nada mais tenha o mesmo gosto
Depois de conhecermos o álcool
nossas línguas já não passam um dia sem desejar 
um doce que deixou de existir

Talvez se não nos masturbássemos tanto
pensando nas namoradinhas adolescentes
As fodas com nossas esposas seriam o suficiente
Talvez se não lembrássemos tanto
dos antigos amigos
bêbados como árvores de natal com o passo em falso,
Os novos parceiros pudessem cantar uma canção
enquanto servem outra vodka
E isso seria o suficiente.
Mas não é assim

Malditos imbecis
Maldito mundo de imbecis na minha cabeça

Ela já não é tão bonita
Eles já não são tão divertidos

E eu 
estou ficando careca.


Por: Rimini Raskin

quinta-feira, 5 de abril de 2012

A Ilha


Saí da cama hoje, ainda com sono, de cueca, bocejando e coçando a bunda. Alguns homens possuem seus rituais matinais, e esse é o meu. Liguei a televisão e um repórter de meia idade falava sobre a nova geração de jovens, sobre a tecnologia, os problemas de assédio, as modas, enfim, essa porra toda que vivem tagarelando. Não consigo mais acompanhar a mentalidade adolescente atual, toda essa padronização estética, todos com a mesma roupa, mesmo cabelo, etc... Sei que existem as excessões, inclusive conheço algumas, mas as coisas mudaram, como era de se esperar. Não me entendam mal, tive uma infância e uma adolescência um tanto filha da puta, em uma cidadezinha mais filha da puta ainda.  Nem faz tanto tempo, mas é como se tivesse acontecido em outra vida. Os jovens não tinham o que fazer, e para nos distrair, sobrava escolher um lado e defender uma causa, brigar por ela; Um estilo de música, uma visão política, um bairro, uma rua, uma banda...tanto faz. Mas o fato é que cada um tinha um lado, mesmo que no final o tédio obrigasse a todos a não ter lado algum. Não conheci ninguém com faculdade ou pretensão de ingressar no ensino superior, todos queriam apenas terminar a escola e conseguir um emprego para descolar uns trocados e poder sair no final de semana. Poderíamos escolher entre trabalhar no comércio ou sermos metalúrgicos em pequenas fábricas ou em uma montadora de automóveis. Até lá, os supermercados ou a construção quebravam um galho. Era uma loucura organizada de certa forma, nos juntávamos para montar uma banda, organizar um festival ou invadir o CFC à noite para ficar de bobeira bebendo vodka e falando merda. Existia um ou dois bares que valiam a pena frequentar, não, pensando bem, eles não valiam nada, eram um lixo, um antro onde se reunia todo tipo de adolescente esquisito ou entediado com a vida. Fosse para escutar as bandas locais, fosse para tocar enquanto o resto pulava de mesas de sinuca e se empurrava em um ambiente minúsculo e escuro. As festas em casa também eram uma fuga inventada durante a ausência dos adultos, a menor notícia de festa na casa de alguém se espalhava por toda cidade como um raio,  e logo a casa de um desconhecido estava cheia de pessoas de todo tipo, a maioria jamais vira o dono do lugar, mas, foda-se, era uma festa. Bebíamos muito, não era muito a minha praia mas, alguns fumavam muita maconha, alguns conhecidos chegaram a se complicar seriamente com traficantes, na oitava série dois colegas meus de escola foram mortos por dívidas com esses traficantes. Eu mesmo me metia em muita confusão, era ameaçado de morte, quase fui esfaqueado uma vez. Conforme o tempo passava as coisas iam ficando mais sérias, os vazios eram maiores, os suicídios apareceram, as gravidezes indesejadas, as clínicas de reabilitação, a prostituição, as crises depressivas. Quem podia, pulava fora quando tinha chance, mudava de hábitos, de âmbitos, de amigos. No fundo todos queriam era pular fora daquela cidade o quanto antes, eu era um deles. Parece caótico e terrível contando dessa maneira, mas não era possível perceber a dimensão do que nos rodeava, tínhamos a diversão, os alívios, estávamos ocupados demais em fugir das realidades dos lares desfeitos ou ruindo, das mães depressivas, dos pais operários e cansados, da falta de grana, da certeza de um futuro tão previsível quanto o sol que nasceria na próxima manhã. Eu passei muitas noites em uma calçada com os amigos, conversando sobre tudo, bebendo, passando frio; Cada um com uma história, com um motivo diferente que no fundo eram os mesmos. Lembro que na adolescência eu tinha ídolos nada convencionais, não eram artistas, políticos ou figuras públicas, eram pessoas normais, do meu convívio, meus amigos mais velhos, que por algum motivo eram meus parâmetros de um sucesso possível dentro da nossa realidade. Na escola tinha um cara, estudava em uma série superior à minha, ele tinha uma banda cover de Nirvana, tocavam apenas os lados B da banda de Seattle, tudo era o mais underground possível, eu admirava aquele cara, queria ser como ele, as gurias achavam ele o máximo, até que saiu uma foto dele no jornal da escola e alguns disseram que estava muito parecido comigo; Daquele dia em diante deixei de admirá-lo. Não por me desvalorizar, mas por entender que eu precisava encontrar alguém ainda melhor para me espelhar. Contrariei as regras e estudei muito, li muito, conheci o quanto me era possível conhecer, trabalhei como ajudante de caminhoneiro, viajava por algumas cidades do estado, entreguei remédios, queimei as mãos em uma fábrica, carreguei cimento, andei com todo tipo de gente que eu julgava interessante pra mim. Perdi amigos, abandonei amigos, conquistei amores e os perdi com a mesma intensidade, reencontrei alguns, amores e amigos, vi a cidade mudar, as pessoas crescerem, não se podia continuar descendo, não imagino como seria se as coisas tivessem caminhado para a piora. O mundo chegou na cidade, bem ou mal, ele chegou. Modificou as ruas, as roupas, as mentes...as pessoas já não são tão feias e já conseguem comprar coisas que antes não conseguiam. Onde antes tinha terra agora é asfalto, já não é preciso sujar os pés nas calçadas de lama, cortaram as árvores da frente de casa, ergueram grades, compraram carros, pintaram as fachadas, substituíram os ônibus antigos, agora tudo é mais feliz, cada um pode ficar no conforto do lar vivendo através de suas tecnologias. Graças a Deus agora nossas crianças estão bem guardadas em suas caixas. 


Por: Rimini Raskin

terça-feira, 3 de abril de 2012

Falácia



É absurdo

E sujo

E lindo

É metamórfico

E esquelético

E malogrado

É cataclísmico

E miserável

E vagabundo

É matemático

E sangrento

E imoral

É escuro

E úmido

E apertado

É surreal

E solúvel

E marginal

É sexualmente transmissível

E lacrimal

E rastejante

...


É vivo!



Por: Rimini Raskin