quinta-feira, 5 de abril de 2012

A Ilha


Saí da cama hoje, ainda com sono, de cueca, bocejando e coçando a bunda. Alguns homens possuem seus rituais matinais, e esse é o meu. Liguei a televisão e um repórter de meia idade falava sobre a nova geração de jovens, sobre a tecnologia, os problemas de assédio, as modas, enfim, essa porra toda que vivem tagarelando. Não consigo mais acompanhar a mentalidade adolescente atual, toda essa padronização estética, todos com a mesma roupa, mesmo cabelo, etc... Sei que existem as excessões, inclusive conheço algumas, mas as coisas mudaram, como era de se esperar. Não me entendam mal, tive uma infância e uma adolescência um tanto filha da puta, em uma cidadezinha mais filha da puta ainda.  Nem faz tanto tempo, mas é como se tivesse acontecido em outra vida. Os jovens não tinham o que fazer, e para nos distrair, sobrava escolher um lado e defender uma causa, brigar por ela; Um estilo de música, uma visão política, um bairro, uma rua, uma banda...tanto faz. Mas o fato é que cada um tinha um lado, mesmo que no final o tédio obrigasse a todos a não ter lado algum. Não conheci ninguém com faculdade ou pretensão de ingressar no ensino superior, todos queriam apenas terminar a escola e conseguir um emprego para descolar uns trocados e poder sair no final de semana. Poderíamos escolher entre trabalhar no comércio ou sermos metalúrgicos em pequenas fábricas ou em uma montadora de automóveis. Até lá, os supermercados ou a construção quebravam um galho. Era uma loucura organizada de certa forma, nos juntávamos para montar uma banda, organizar um festival ou invadir o CFC à noite para ficar de bobeira bebendo vodka e falando merda. Existia um ou dois bares que valiam a pena frequentar, não, pensando bem, eles não valiam nada, eram um lixo, um antro onde se reunia todo tipo de adolescente esquisito ou entediado com a vida. Fosse para escutar as bandas locais, fosse para tocar enquanto o resto pulava de mesas de sinuca e se empurrava em um ambiente minúsculo e escuro. As festas em casa também eram uma fuga inventada durante a ausência dos adultos, a menor notícia de festa na casa de alguém se espalhava por toda cidade como um raio,  e logo a casa de um desconhecido estava cheia de pessoas de todo tipo, a maioria jamais vira o dono do lugar, mas, foda-se, era uma festa. Bebíamos muito, não era muito a minha praia mas, alguns fumavam muita maconha, alguns conhecidos chegaram a se complicar seriamente com traficantes, na oitava série dois colegas meus de escola foram mortos por dívidas com esses traficantes. Eu mesmo me metia em muita confusão, era ameaçado de morte, quase fui esfaqueado uma vez. Conforme o tempo passava as coisas iam ficando mais sérias, os vazios eram maiores, os suicídios apareceram, as gravidezes indesejadas, as clínicas de reabilitação, a prostituição, as crises depressivas. Quem podia, pulava fora quando tinha chance, mudava de hábitos, de âmbitos, de amigos. No fundo todos queriam era pular fora daquela cidade o quanto antes, eu era um deles. Parece caótico e terrível contando dessa maneira, mas não era possível perceber a dimensão do que nos rodeava, tínhamos a diversão, os alívios, estávamos ocupados demais em fugir das realidades dos lares desfeitos ou ruindo, das mães depressivas, dos pais operários e cansados, da falta de grana, da certeza de um futuro tão previsível quanto o sol que nasceria na próxima manhã. Eu passei muitas noites em uma calçada com os amigos, conversando sobre tudo, bebendo, passando frio; Cada um com uma história, com um motivo diferente que no fundo eram os mesmos. Lembro que na adolescência eu tinha ídolos nada convencionais, não eram artistas, políticos ou figuras públicas, eram pessoas normais, do meu convívio, meus amigos mais velhos, que por algum motivo eram meus parâmetros de um sucesso possível dentro da nossa realidade. Na escola tinha um cara, estudava em uma série superior à minha, ele tinha uma banda cover de Nirvana, tocavam apenas os lados B da banda de Seattle, tudo era o mais underground possível, eu admirava aquele cara, queria ser como ele, as gurias achavam ele o máximo, até que saiu uma foto dele no jornal da escola e alguns disseram que estava muito parecido comigo; Daquele dia em diante deixei de admirá-lo. Não por me desvalorizar, mas por entender que eu precisava encontrar alguém ainda melhor para me espelhar. Contrariei as regras e estudei muito, li muito, conheci o quanto me era possível conhecer, trabalhei como ajudante de caminhoneiro, viajava por algumas cidades do estado, entreguei remédios, queimei as mãos em uma fábrica, carreguei cimento, andei com todo tipo de gente que eu julgava interessante pra mim. Perdi amigos, abandonei amigos, conquistei amores e os perdi com a mesma intensidade, reencontrei alguns, amores e amigos, vi a cidade mudar, as pessoas crescerem, não se podia continuar descendo, não imagino como seria se as coisas tivessem caminhado para a piora. O mundo chegou na cidade, bem ou mal, ele chegou. Modificou as ruas, as roupas, as mentes...as pessoas já não são tão feias e já conseguem comprar coisas que antes não conseguiam. Onde antes tinha terra agora é asfalto, já não é preciso sujar os pés nas calçadas de lama, cortaram as árvores da frente de casa, ergueram grades, compraram carros, pintaram as fachadas, substituíram os ônibus antigos, agora tudo é mais feliz, cada um pode ficar no conforto do lar vivendo através de suas tecnologias. Graças a Deus agora nossas crianças estão bem guardadas em suas caixas. 


Por: Rimini Raskin

2 comentários:

  1. Um depoimento cheio de sentimentos intensos, críticas, saudades nostálgicas, arrependimentos, indecisões, sem se saber ao certo o que foi ruim e bom ao mesmo tempo. Uma linha do tempo densa, pesada. Um caminho sem volta, como o de todos nós.

    Tempos atrás fiz um exercício interessante: peguei uma fita métrica de zero a cem centímetros, posicionei meu dedo na minha idade atual e consegui entender a dimensão do meu tempo vivido, comparado com o que hipoteticamente me resta. Sugeri que o fim da vida fosse aos 80 anos de idade. Logo, eu com um pouco mais que 20 anos, percebi que me sobra menos de 3 vezes o tempo que já vivi. São mais três chances de fazer algo que eu realmente queira. O engraçado é que as vezes demoramos uma vida inteira para saber o que realmente queremos. Mas isso, claro, não é uma regra. Falando desse exercício de reflexão não se pode entender o que significa visualizar fisicamente a metragem do que supostamente ainda temos para viver, e tudo não passa de hipóteses.

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  2. Bom exercício, interessante reflexão. No fim, tudo é como pode ser. Bom ou ruim, é relativo. Na vida acontece tanta coisa, de tantas formas. Podemos terminar aos 80 ou aos 30, até mesmo amanhã podemos terminar. É questão de manter o pensamento firme e viver da melhor maneira possível. Bem aquele lance das cartas, não é preciso ter sempre boas cartas e sim tirar o melhor das cartas que tem.

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