(...) Decidi levar à sério essa história de escrever como quem morre. É uma maneira simples de deixar algo para trás. Poderia deixar um filho, mas isso seria cruel, nenhuma criança se orgulharia de ter um egoísta filho da puta como pai. Um filho da puta capaz de colocá-lo neste mundo de merda, cheio de mentiras. Cheio de vazio. Esqueça o filho. Esqueça o legado de sangue e toda essa baboseira sobre eternizar-se. Eu fui uma criança feliz, talvez essa deva ter sido minha maldição. Nunca mais alcancei a alegria de criança, aquela felicidade de filhote que um cão velho nunca mais irá experimentar novamente. A felicidade de encontrar os que hoje se foram. Os que assim como eu, não aguentavam o peso do medo da vida entregue a nulidade de uma cidade pequena. Vivo nesse apartamento. Estou doente como esse apartamento doente de paredes sem tinta. Os médicos me mandaram ficar em casa. Pediram-me para não ficar sozinho. Falam tanta bobagem. Não as falariam se conhecessem o inferno. Não é preciso vivê-lo, basta experimentá-lo para a primeira impressão ser eterna. Sinto falta de coisas que fui. Sinto falta dos sentimentos. Das variedades de almas que me habitaram e que decidiram viajar para bem longe sem previsão de retorno. Como um marido que foi buscar cigarros e não voltou. Noite passada sonhei que um carro me buscava na frente da casa da minha mãe. Nele estavam o Raul e a Sofia, eles não sorriam, mas estavam lá para me buscar no mesmo carro azul que dirigíamos na noite do meu aniversário de vinte anos. O mesmo carro azul que caiu no rio horas depois de terem me deixado em casa. Vinham me buscar porque eu deveria estar naquele carro. Não deveria ter pedido para voltar. Mas agora é tarde. Tudo é sempre tarde. Eu passei mal, os comprimidos não me fizeram bem naquela noite. Queria tanto pedir desculpas. Mas é sempre tarde para quem nasce.
Quando soube do acidente, chorei tanto que minhas lágrimas queimaram o rosto, fizeram gretas como água que corta o deserto. E sempre que o rio transbordava, eu ficava na ponte esperando os dois nadarem de volta para a minha vida. Mas nunca aconteceu. E talvez seja por isso que dói tanto quando chove. Sem eles o fardo era pesado demais. Três anos depois, cruzei a linha que me mantinha preso à um passado indigesto e entrei no ônibus carregando nas costas somente minha condição. Sozinho. Raul escrevia tão bem, certamente seria publicado. Sofia era linda, era nossa. Éramos os donos das estradas de terra que levavam à lugar nenhum. Éramos os detestáveis do boteco do Seu Armindo. Éramos o que ninguém mais poderia ter sido. Mas é sempre tarde para quem nasce. É sempre tarde. Acordei com um aperto no peito. Chamei. Mas não havia ninguém para escutar um grito que não existiu. Olhei em volta e por um segundo estava de novo no meu quarto de guri, com os pôsteres do Led Zeppelin na parede e a lua na janela de madeira. Por um segundo respirei de novo o ar que vinha do rio e consegui chorar como no dia do acidente. Não durou muito. E aqui estou eu decidido a escrever para lembrar. Lembrar para esquecer de onde vim e dos que ficaram no caminho com seus sonhos de guitarra e revoltas nunca muito bem explicadas. Passei a manhã toda cantando aquela canção que escrevi com Sofia. Aquela que falava que é sempre tarde para quem nasce. Tarde. Éramos nós, os contra o mundo e contra nós mesmos, do mundo. Éramos nós. Três. O uno. O balanço da pracinha e as folhas caindo na clareira do parque. Éramos nós. Os planos que ficaram no caminho. O vazio nunca suprido. Éramos nós. Agora não é mais. Nem o frio. Nem a chuva fina nas ruas de paralelepípedo. Não é mais. Agora é um. E nesse apartamento, doente, somente o espelho é testemunha de que tornei-me insuportável como um velho cachaceiro. Ou pior, sou outra vez indesejável como um filho adolescente que se recusa a tomar os remédios. Sou a escória do mundo. O veneno da alma. Por isso tomei a decisão de escrever como quem sangra. Com o fôlego de quem morre em dez capítulos. (...)
Por: Rimini Raskin
=)
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