"Décima Noite
Passei muito mal hoje à tarde. Pensei que não aguentaria. Quebrei um copo e minhas mãos sangraram ao juntar os cacos da minha vergonha. Manchei de vermelho os azulejos brancos do banheiro na tentativa de lavar os ferimentos na pia velha já meio lascada. Enrolei as mãos com um pano de prato e bebi um gole de vodka para suportar a dor das fendas abertas. De hora em hora a vizinha vem me perguntar como me sinto. Sorrio e digo que estou trabalhando em umas coisas. Ela sorri de volta. Fala algo sobre os benefícios do trabalho na alma humana. Algo que me lembra aquela frase famosa no portão de Auschwitz. Mas no fundo, gosto muito da Dona Marlí. Lembra minha mãe. Uma vez, quando eu tinha nove anos, subi em um araçazeiro enorme para uma criança de nove anos, despenquei uns três metros até atingir o chão. Quebrei o braço direito e cortei as mãos, não sabia como voltar para casa, tinha vergonha dos machucados, medo de que minha mãe me visse chorando. Eu, o homem da casa, o único homem que ela ainda podia chamar de seu. O único que não tinha fugido durante uma madrugada com outra mulher. Minha mãe não gostava do Raul e da Sofia. Mas no fundo eu até entendia ela. É complicado viver com medo de ser abandonada de novo. Acho também que ela não gostava por medo de admitir que os dois eram a coisa mais certa em uma vida tão errada como era a nossa. Sei que não fui o melhor filho, mas fui o melhor que pude para uma mãe que era a única que eu tinha. Sinto muito não ter estado ao lado dela quando os aparelhos foram desligados. A morte as vezes é longe demais, as vezes nem isso. Uma vez fomos ao funeral de uma guria, Raul a conhecia, Sofia foi por curiosidade. Eu não sei por que fui. Para estar junto eu acho. O nome dela era Camila. Só chegando lá é que descobri se tratar da filha mais nova do Miguelão da fruteira. Estava linda. Era uma criança. Não é mais. Hoje sinto que um pouco da nossa infância ficou ali, com ela. Não por sentimento, nem a conhecíamos direito, mas aquela imagem, aquele corpo pequeno em uma caixa, aquilo marca, e assusta. Na volta do velório, atalhamos pelo terreno baldio onde ficava a antiga fábrica de Schmier. O lugar era cheio de bergamoteiras, sentávamos lá no verão para comer as frutas enquanto conversávamos ou ouvíamos as coisas que o Raul escrevia. Deitávamos à sombra das árvores em uma lona que achamos na casa da avó da Sofia. Era bom. Era quente. Ao contrário desse apartamento. Aqui é frio demais durante a noite e as crianças ao lado parecem não ter sono. A madrugada inteira parece acordada para o meu desespero de solidão. Lembro de uma vez que o Raul falou que o frio só existia na ausência. Hoje entendo perfeitamente o que ele quis dizer naquela noite de inverno em que dormíamos os três amontoados, escondidos no galpão do velho Nestor. Naquelas noites que ninguém sabia. Que ninguém poderia saber. Não sentíamos culpa, mas tínhamos medo do que pudesse acontecer. Medo da vergonha que nossos pais sentiriam. Era comum sentir medo. Mas era ruim. Sofia tinha medo do pai dela, eu também tinha. O Raul não tinha medo de nada. Queríamos montar uma banda e eu até aprendi a tocar guitarra. Hoje não sei se lembro das notas. Sofia cantava, cantava tanto quanto era linda. Sofia. Tinha os cabelos escuros e compridos como uma crina de cavalo. Trazia nos olhos todo brilho que faltava na vida daquela cidade de merda. Gosto de lembrar do Raul escrevendo no caderno velho de capa verde musgo, cabelos pelo ombro, pele muito branca. Escrevia sobre o que encontraríamos no outro lado do rio. Riscava frases do Lou Reed em todo canto. Brincávamos de ser o Velvet Underground, com nossas jaquetas de couro e calças jeans. Ficávamos horas e horas curtindo vídeos das bandas que o primo dele mandava de São Paulo. Víamos e revíamos aquela pilha de fitas VHS. Imitando as atitudes, as poses, as roupas. Naquela época ainda não era tarde. Mas nenhum de nós teria como saber..."
Por: Rimini Raskin
Nenhum comentário:
Postar um comentário