(...) Outro sonho. Não entendo como consigo sonhar
em tão pouco tempo de sono. Não entendo muitas coisas, somente as aceito. Na
verdade, não sei se são sonhos de fato. Talvez eu nunca durma. Talvez eu nunca
tenha dormido nos últimos quatorze anos. Sofia me abraçava como se me perdoasse
do crime de viver. Raul não estava. Talvez nunca me perdoe. Talvez nunca tenha
me culpado. Não existem culpados, mas Sofia não teve tempo de aprender isso. O
lugar era escuro, havia água sob meus pés e sobre nossas cabeças. Sofia não
tinha pés, estavam submersos pela água escura e revolta. Entre nós era só
vazio. Pedi perdão convulsivamente, chorei idem. Aquela boca de mulher que
tanto amei, apenas sussurrava que tudo ficaria bem. Em breve. Muito em
breve. Não conseguia soltá-la, agarrava-me com tanta força que meus músculos
doíam. Mas é inútil agarrar-se aos mortos quando não nos pertencem mais. Nunca
mais. Sofia se foi, comigo restaram apenas os medos e a vergonha de ser um
covarde sem forças para enfrentar a vida ainda vivo. Deus não joga dados mas
prega peças, era o que Raul dizia antes de deixar de acreditar no que quer que
fosse. Aquele que não teme se iguala. E por isso não acredito em santos. E por isso odeio
os profetas de rua que disseminam o medo de Deus. A liberdade é um direito
conquistado à duras penas. Vence, o que supera os julgamentos, o que se livra
do veneno da palavra que escraviza. Vence, o que se faz abstrato, tangente,
impossível, inexorável, ileso perante as espadas. Bem aventurados sejam os
loucos, pois à eles pertencem os céus do pensamento livre. Maldito seja todo o
resto. Queimei meus documentos, as cartas, as contas ...Queimei... Teria queimado
a casa toda se não precisasse dela para continuar escrevendo. E assim, aos
poucos me livro da terra que em dias de chuva me deixa na lama. Não verei a
revolução, não estarei com o povo na rua no momento em que os prédios ruírem.
Não verei jamais o que ainda não existe, mas estarei torcendo pelos que nunca
desistiram. Pois deles será a glória e o respeito e as estátuas. Deles serão os
nomes de ruas, parques e museus. Terão o privilégio de continuarem existindo
até a próxima queda. Minhas roupas fedem. Meus pés estão dormentes pelo frio. Quis
fumar um cigarro, mas o maço estava vazio. Todas essas garrafas secas e móveis
empoeirados à minha volta deixam-me nervoso. Tornei-me parte da decoração
decadente deste apartamento. Escondi os espelhos com toalhas de banho por não suportar mais a sensação de estar sendo observado por minha própria desgraça.
Pergunto-me qual teria sido a próxima história a ser contada se não houvessem
assassinado o Bacana. Qual seria a próxima risada, a próxima mentira divertida
ao pé da árvore. Quando matam um bom, os maus não ganham poder. Apenas
descolorem o coração de alguns, gerando um espaço que nunca será preenchido. Já
quando um mal é morto, outros logo aparecerão para tomar o seu lugar.
Orgulho-me de partir sem deixar vazio ou vaga a ser preenchida. De certa forma,
sinto-me feliz por não deixar dor ou saudade. Morro, em suma, como um cão de
rua que no máximo desperta a pena da senhora que o alimentava. Eis a tragédia
da vida dos homens. E não é questão de ser fatalista ou pessimista perante as
situações. O fato é que as coisas não aconteceram para mim de forma bonita.
Isso acontece com alguns, outros se tornam executivos, maridos fiéis, bons
vendedores, amantes, entusiastas, etc... Acredito que no mundo sempre irá existir lugar
para todos e para ninguém (...)
Por: Rimini Raskin
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