sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Trecho de Noturnos - O Final em Dez Capítulos (III)



(...) Outro sonho. Não entendo como consigo sonhar em tão pouco tempo de sono. Não entendo muitas coisas, somente as aceito. Na verdade, não sei se são sonhos de fato. Talvez eu nunca durma. Talvez eu nunca tenha dormido nos últimos quatorze anos. Sofia me abraçava como se me perdoasse do crime de viver. Raul não estava. Talvez nunca me perdoe. Talvez nunca tenha me culpado. Não existem culpados, mas Sofia não teve tempo de aprender isso. O lugar era escuro, havia água sob meus pés e sobre nossas cabeças. Sofia não tinha pés, estavam submersos pela água escura e revolta. Entre nós era só vazio. Pedi perdão convulsivamente, chorei idem. Aquela boca de mulher que tanto amei, apenas sussurrava que tudo ficaria bem. Em breve. Muito em breve. Não conseguia soltá-la,  agarrava-me com tanta força que meus músculos doíam. Mas é inútil agarrar-se aos mortos quando não nos pertencem mais. Nunca mais. Sofia se foi, comigo restaram apenas os medos e a vergonha de ser um covarde sem forças para enfrentar a vida ainda vivo. Deus não joga dados mas prega peças, era o que Raul dizia antes de deixar de acreditar no que quer que fosse. Aquele que não teme se iguala. E por isso não acredito em santos. E por isso odeio os profetas de rua que disseminam o medo de Deus. A liberdade é um direito conquistado à duras penas. Vence, o que supera os julgamentos, o que se livra do veneno da palavra que escraviza. Vence, o que se faz abstrato, tangente, impossível, inexorável, ileso perante as espadas. Bem aventurados sejam os loucos, pois à eles pertencem os céus do pensamento livre. Maldito seja todo o resto. Queimei meus documentos, as cartas, as contas ...Queimei... Teria queimado a casa toda se não precisasse dela para continuar escrevendo. E assim, aos poucos me livro da terra que em dias de chuva me deixa na lama. Não verei a revolução, não estarei com o povo na rua no momento em que os prédios ruírem. Não verei jamais o que ainda não existe, mas estarei torcendo pelos que nunca desistiram. Pois deles será a glória e o respeito e as estátuas. Deles serão os nomes de ruas, parques e museus. Terão o privilégio de continuarem existindo até a próxima queda. Minhas roupas fedem. Meus pés estão dormentes pelo frio. Quis fumar um cigarro, mas o maço estava vazio. Todas essas garrafas secas e móveis empoeirados à minha volta deixam-me nervoso. Tornei-me parte da decoração decadente deste apartamento. Escondi os espelhos com toalhas de banho por não suportar mais a sensação de estar sendo observado por minha própria desgraça. Pergunto-me qual teria sido a próxima história a ser contada se não houvessem assassinado o Bacana. Qual seria a próxima risada, a próxima mentira divertida ao pé da árvore. Quando matam um bom, os maus não ganham poder. Apenas descolorem o coração de alguns, gerando um espaço que nunca será preenchido. Já quando um mal é morto, outros logo aparecerão para tomar o seu lugar. Orgulho-me de partir sem deixar vazio ou vaga a ser preenchida. De certa forma, sinto-me feliz por não deixar dor ou saudade. Morro, em suma, como um cão de rua que no máximo desperta a pena da senhora que o alimentava. Eis a tragédia da vida dos homens. E não é questão de ser fatalista ou pessimista perante as situações. O fato é que as coisas não aconteceram para mim de forma bonita. Isso acontece com alguns, outros se tornam executivos, maridos fiéis, bons vendedores, amantes, entusiastas, etc... Acredito que no mundo sempre irá existir lugar para todos e para ninguém (...)


Por: Rimini Raskin

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