O grande automóvel verde do desejo tem a boca grande
Devora toda a santidade superficial exigida por lei
pelos escribas sociais de merda nenhuma
Ele acelera e atropela pequenos méritos familiares
acumulados a duras penas por minha alma sexoagitada
E quem passa na estrada pode ainda ver as carcaças
mesmo depois de semanas de apodrecimento e sol a pino
É o espetáculo da degeneração dos valores aceitáveis
um programa ruim de televisão onde indígenas são demonizados
enquanto o grande automóvel segue indômito e sedento ainda
que sem muito barulho rasgando como faca bandida a carne
do cotidiano bunda mole sem que sua pintura seja arranhada
pelos ossos normativos do grande esqueleto negro que é a vida
Mas não a vida real, falo da vida forjada, impostora
esposa fiel da ilusão industrial e da propaganda macabra
A maldade gás e bombardeios onde ninguém assume a culpa
Foram eles e é sempre eles não eu não nós são eles e apenas eles
foi o outro é o outro quem deve morrer quem deve pagar é o outro
Não me entenda mal, meu amor, não quero ser como os vagabundos
da Rua da Praia tocando gaita e um pandeiro de plástico em troca de trocados
ou do gesto bonito dos teus lábios ao gritar as horas sob a garoa fina de dezembro
O que quero é aquilo que tem o vagabundo, aquela coisa escondida sob
o manto surrado das necessidades o pássaro azul sufocado pelo mal cheiro
mas ainda lá, vivo e orgulhoso de poder ser quem é, se quiser
O grande automóvel verde é mesmo grande para todos nós, inclusive para eles
os outros, os culpados e pecadores índios vagabundos e empresários de sucesso
nele cabe muita lama e muita lágrima e muito remédio para tudo que é da vida
Nele há também um reboque para nossos egos com um pequeno buraco
onde podem respirar e espiar a vida passando rápido, seguros e confiantes em sua
caixa escura e dura.
Por que ninguém saca que o céu é o céu e as árvores e os rios e a poeira
e a tempestade e a palavra e o ouvido e o pau e a buceta são santos?
Por que não entendem que quem não aceita o espinho na carne não merece
o paraíso guardado no fundo das coisas pequenas?
O último gole, a migalha final na hora da fome o gozo satisfeito ou a mijada matinal...
todos maravilhosos milagres dos que foram capazes de enxergar.
- Sr. "X", tenho uma péssima notícia para o senhor...infelizmente seus créditos
não lhe garantem porra nenhuma em nosso estabelecimento.
-Raskin