terça-feira, 9 de agosto de 2011

Talvez não seja por falta de coragem, mas alguns cães preferem a noite para se fazerem mais cães.



O álcool vermelho ainda repousa no fundo da taça quando minha cabeça maquina frases convulsas carregadas de significados disléxicos e ritmologias sintéticas de início de madrugada e fim de chama de vela; A última do pacote, a vela amarela, a luminosidade que acredito e credito como a do fim da vida. Em algum lugar alguém faz sexo sem paixão, outro se droga em uma cela que chama de sala onde um terceiro um dia usará para jantar. Vou até a sacada e a cidade inteira parece correr em fluxo interno. Sob os bueiros todo o resto da vida comum se arrasta em direção ao rio. Poderia ter te olhado uma última vez e não fiz. Uma sirene rompe o som sepulcral do silêncio dos moribundos, possivelmente um ataque do coração ou uma abordagem policial afim de manter a ordem no vazio. Suspiro e vejo minha alma virar fumaça em contato com o ar gelado da madrugada. De repente seja isso. Somos todos criaturas invisíveis esperando o inverno para nos tornarmos algo um pouco mais físico, para nos tornarmos carnais, ainda que intocáveis como o vapor. Hálitos de uma dor ainda maior. Os cachorros destrincham o lixo atirado nas ruas, brigam por nossas migalhas, um deles me olha e é como se lesse minhas aflições. Corre, corre com a força de quem foge da morte antes que a encontre nas rodas de um carro na próxima esquina. Volto para a mesa e bebo o vinho repousado. Lembro que alguns casais apelam para a ciência e geram seus filhos em um laboratório, dentro de uma pipeta. Comigo não é diferente. A embriaguez é minha cria, um filho in vitro que passei a vida lutando para que não se tornasse meu pai. O piso estala de frio, as coisas ganham ruídos surdos de desespero e por alguns instantes esqueci do toca discos girando no nada. Tocando a melodia secreta contida no espaço negro e liso e infinito que só os bêbados tem permissão de desfrutar. Não há comida no prato esmaltado sobre a mesa. Não há fome no corpo encostado sobre a mesa. Tão pouco há mesa senão um móvel encostado sobre. O toca discos me incomoda. Vendo meus olhos com a mão esquerda. Com a direita escolho um livro na prateleira branca de pés toscamente serrados. Escolho uma frase. A frase me escolhe.Nada me diz. Tudo me revela. E a vela que segue amarela me serve agora de lanterna para o segredo das luzes do alvorecer. Bebo um gole, e outro e mais um que assim como o primeiro também é um gole de sede e de necessidade paterna. Deito-me cansado, sem sono. Sem vontades de. Com desejos de muitos "ses" e "des" que nem o velho Hermann conseguiria explicar em um lobo que ao mesmo tempo são cem, mil. Com a cera desenho meu destino antes que o fogo abandone o corpo. No apartamento ao lado as crianças acordam. Imagino estarem revoltadas com a aula de sábado. Assim como na minha infância também a amaldiçoei. Meia garrafa e dois comprimidos de meio grama cada. Um cigarro amassado. O último. Um olhar apagado para a rua nublada de começo de vida. Não da minha. Mas daqueles que a ousaram enfrentar.


Por: Rimini Raskin

3 comentários:

  1. Gostei! Se puxou hein.
    Jéssica.

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  2. Um belo texto, com cada detalhe em seu lugar bagunçado de estar. A vida que observa a vida faminta de vida. Daria uma bela estória de uma história, isso sim. Gosto quando tu descreves tudo que está lá, e tudo que sente-se dentro do peito, é como se eu estivesse junto, observando, e sentindo...

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  3. "Gosto quando tu descreves tudo que está lá, e tudo que sente-se dentro do peito, é como se eu estivesse junto, observando, e sentindo..." Suas palavras sempre alcançam algo em mh mente... Ainda m parece confuso, então apontar o que seria é meio difícil pela dúvida que acredito ser maior q o q sei... Esse em especial, faz-me imaginar o seu ponto d vista, faz-me ver sob aquilo q quisestes escrever. A verdade é q me parece remeter a uma noite qualquer em que parei pra analisar quantos seres racionais ou n, estavam aproveitando a escuridão da noite para fazer valer seus atos mais insanos... Jéssica Nayara @sigammosbons

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