terça-feira, 16 de agosto de 2011

Talvez não seja por falta de coragem, mas alguns cães preferem a noite para se fazerem mais cães. Parte II


Toda noite a noite soa como deve soar. Mais ou menos como a voz do Lou Reed riscada com angústia química no banco do ônibus as três da madrugada. Na volta pra casa, no meio do nada. Mais ou menos como o velho bêbado que mal suporta o peso da própria desgraça sobre as pernas bambas de vodka barata. Garrafas são quebradas em um lugar mais próximo do que imagino. Gritos ao longe soam como animais em uma selva em busca de presas. Ou apenas como crianças celebrando os instintos mais sujos que a luz do dia sufoca. Prostitutas enfrentam o frio, esforçam-se para controlar o queixo que teima bater em desespero de abstinência e temperatura negativa. Não fossem as poças de lama e os caminhos de terra, talvez, apenas talvez, essas estradas me levassem à um lugar comum. Desejo cruzar a ponte, não por essa noite, mas por todas as noites que existiram antes dessa. Desejo olhar o rio engarrafado por dragas carregadas da areia suja que um dia construíram minha casa. A mesma sujeira que imundiciou minhas mãos e todos os corações dessa cidade imunda separada da vida pelo rio. Se canto, canto pela dor que o mundo constrói, pela fome de amor sadio, pela liberdade pintada no muro branco do bom cristão, pelo vizinho que chama a polícia, pela própria polícia chamada, pelas famílias quebradas e coladas com a durex dos bons costumes. Pela farça, pela sujeira maquiada no rosto das senhoras, pelos preconceitos velados na mesa de jantar. É por isso que cantava quando afinal caiu a noite no mundo e com ela a brutalidade dos desejos ocultos. Com ela os agentes secretos do pudor e do politicamente correto calaram. Com ela nasceu o pecado da língua. E o fogo que queima no peito do jovem transbordado e no velho cansado que descobriu cedo demais a própria moléstia. Com ela caiu o álcool e os cigarros. Caíram todos os que morreram cada dia mais e mais em uma jaula de trabalho. Caíram os poetas e os vagabundos. Caíram os bandidos sujos e os criminosos do pensar. Caiu toda nossa vergonha. Fizeram-se os cães escondidos na alma do cidadão comum. Lá fora a noite arde e quero também arder com ela. Com ou sem Lou Reed no banco do ônibus, com a voz que ativa a bomba dos meus irmãos abastados e bastardos de um pai que não seja o vício. Quero olhar no fundo dos olhos de quem me ignora e gargalhar de insanidade. Compensar todo esse vazio no peito de alguém disposto a me dar um cigarro, um copo ou o corpo. Preciso esquecer do dia de cão na calçada escolhida. Preciso voar. Longe de casa. Perto de mim. Preciso encontrar quem eu fui antes de terminar com as pernas fracas pela doença do final das horas.

Por: Rimini Raskin

Nenhum comentário:

Postar um comentário